Não há uma segunda oportunidade para criar uma primeira boa impressão? O Rio de Janeiro vai tentar provar, a partir desta sexta-feira, 5, que no Brasil as ideias feitas desfazem-se depressa. E, para isso, só precisa de encarar os próximos desafios ao melhor estilo carioca. Resumido numa frase: “É só dar um jeito, né?!”
A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos é a grande oportunidade do Rio de Janeiro para, perante o mundo, fazer esquecer as semanas em que a cidade, por aquilo que se ia lendo e ouvindo, parecia estar a ser flagelada pelas sete pragas do Egito ou encurralada dentro de um mau filme-catástrofe, daqueles que Hollywood costuma exportar sem outro critério que não seja o do lucro fácil.
As ameaças foram variando o seu grau de perigosidade, mas eram sempre terríveis: milhões de mosquitos capazes de espalhar uma doença terrível que iria dizimar as próximas gerações (mas, pelo que se lê, a maior ameaça do zika está hoje na Florida, EUA); águas de tal modo contaminadas que podiam criar doenças horríveis para sempre (deve ser por isso que, nestes dias, só os estrangeiros andam a banhos em Ipanema e em Copacabana, enquanto os brasileiros se desculpam dizendo que a água está fria…); níveis de poluição do ar capazes de intoxicar os atletas de tal forma que os resultados desportivos serão, inevitavelmente, uma lástima (exatamente o mesmo que se escreveu antes de Los Angeles 1984 e Pequim 2008, com os resultados que se conhecem, nomeadamente nessa prova “fraquinha” como a maratona…); milhares de ladrões e assassinos à espreita dos visitantes estrangeiros (Atlanta era, oficialmente, a cidade com maiores índices de criminalidade dos EUA, quando recebeu os Jogos em 1996, alguém ainda se lembra disso?). E a lista poderia continuar com o caos nos transportes, instalações sem segurança, militarização das ruas, ameaças terroristas (como se algum país no mundo possa dizer, neste particular, que está seguro e preparado para isso…).
Até ao momento, o Rio tem conseguido sobreviver a todas essas pragas e prepara-se para inaugurar os Jogos Olímpicos que conquistou há sete anos, quando se encontrava num período de enorme euforia e o seu crescimento económico e social era elogiado em todo o mundo – aquela época em que Obama, depois de ver a sua Chicago perder a organização dos Jogos para o Rio, reconhecia a derrota com a desculpa de que Lula era “o político mais popular do planeta”, lembram-se?
Hoje não há políticos populares no Brasil – esperam-se, aliás, enormes vaias na cerimónia de abertura, no Maracanã, para qualquer um que apareça sob os holofotes. A divisão é profunda. Uns gritam “Fora Dilma”, outros respondem com “Fora Temer”. Se a organização de uns Jogos Olímpicos é sempre, em qualquer país do mundo, uma operação de enorme dificuldade, ela é ainda mais num país nestas condições, a viver uma crise económica profunda e dizimada por anos e anos de uma desigualdade social obscena.
Olhando friamente para a realidade, não custa admitir que os Jogos do Rio 2016 têm tudo para correr mal. Mas não por causa da poluição ou do zika, mas por aquilo que são sempre as maiores ameaças de uns Jogos Olímpicos: a gestão logística de um acontecimento que decorre em simultâneo em vários pontos da cidade, obrigando ao transporte de dezenas de milhares de atletas, jornalistas e espectadores. E, nesse campo, por mais planos que existam, por mais consultores estrangeiros que se contratem, nunca tudo está completamente previsto. Em lado algum. Basta ter memória: os Jogos de Atlanta 1996 (nos EUA!) foram considerados os piores da história recente exactamente por isso. Os primeiros dias de Londres 2012 quase ficaram manchados pelo caos nos transportes. As comunicações foram uma lástima nos momentos iniciais de Pequim 2008.
Nuns Jogos Olímpicos não chega cumprir o plano à risca – é preciso saber improvisar. E nisso os brasileiros costumam ganhar a medalha de ouro. E é preciso reconhecer que, até ao momento, têm improvisado bem. Há caos nos transportes? Inventam-se mais uns feriados para fazer diminuir o trânsito. A população não anda muito entusiasmada? Organizam-se uma série de festas pela cidade, com as escolas de samba a estrearem o novo Boulevard Olímpico. A Aldeia Olímpica tem problemas de electricidade e de canalizações? Destaca-se um batalhão de electricistas e canalizadores para remendar tudo e ficar lá em permanência para responder a cada nova solicitação. Há desconfiança sobre a segurança na cidade? Reforça-se o esquema policial, que agora pode chegar já aos 100 mil elementos – embora sem as trincheiras de sacos de areia que, há quatro anos, se viam em Londres.
A concepção da cerimónia de abertura é, por si só, o melhor exemplo desse improviso, desse “jeito” brasileiro de resolver as dificuldades que possam surgir. Isso mesmo foi explicado pelos directores artísticos do espectáculo, que confessaram nunca ter perdido o ânimo à medida que iam vendo o orçamento da cerimónia diminuindo – será apenas 10% do valor gasto há quatro ano por Danny Boyle, em Londres.
Em vez de improviso, chamaram-lhe “gambiarra”, à brasileira, mas é tudo a mesma coisa. “Estamos habituados a isso. É esse o espírito do Brasil. Não temos com o que fazer, mas faremos. Gambiarra é tudo, é maravilha, é pura criação”, sintetizou, de forma clara, Daniela Thomas, uma das encenadoras. Perante o espanto dos jornalistas estrangeiros que não sabiam o que era essa tal de “gambiarra”, ela improvisou também e socorreu-se de uma personagem universal da TV: “É como o McGyver, ele arranjava sempre uma solução”.
O Rio vai precisar de encontrar muitas soluções nos próximos dias para os vários problemas que inevitavelmente vão surgir. Há lacunas evidentes e até difíceis de explicar: não se percebe como num país de 200 milhões de habitantes, o “exército” de voluntários parece ser dos mais pequenos nos últimos Jogos. Há, por causa disso, atrasos desnecessários em muitos serviços. Há filas para quase tudo, e muitas delas podiam ser evitadas. Há ainda muita rigidez nos serviços de transporte, mas também, curiosamente, algum laxismo nos controlos de segurança quando comparado com anteriores Jogos. Só um exemplo: em Pequim e Londres, a Aldeia Olímpica era um bunker, aqui até se permite que os táxis parem quase à porta.
Mas há também um espírito olímpico a começar a crescer entre os cariocas, nos últimos dias. Há vontade e orgulho para que tudo corra bem e que a cidade se mostre “maravilhosa” ao mundo.
As críticas, mesmo dos sectores mais radicais, viram-se cada vez mais para “os políticos” e deixaram de se centrar nos Jogos. Os protestos contra a tocha olímpica são por causa do “dinheiro mal gasto” e na sua “comercialização excessiva”. De resto, não se ouve ninguém criticar – antes pelo contrário – o facto de Michael Phelps, Usain Bolt, Novak Djiokovic e as estrelas da NBA, entre outros, estarem agora na cidade.
A cerimónia de abertura promete, segundo os organizadores, transmitir uma mensagem de tolerância, numa época marcada pelo surgimento de Trump, nos EUA, e do Brexit, no Reino Unido, conforme explicou o realizador Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”), um dos directores do espectáculo. E prometeu também que não terá nada a ver com as cerimónias anteriores: “A de Atenas foi clássica; a de Pequim, grandiosa; a de Londres foi esperta; e a nossa vai ser cool”.
É esse o jeito para causar uma boa impressão… nem que seja à segunda oportunidade.