Maysa Daw parece, à primeira impressão quando a encontramos atrás do palco, uma mulher tímida, discreta, que passaria despercebida entre a multidão. Horas mais tarde, quando a vemos em palco, é outra pessoa, um furação de energia, uma presença cheia de carisma, uma voz poderosa quando fala ao público: “Este corpo é meu, estas cicatrizes, estas rugas são minhas”.
Maysa Daw e os fundadores Tamer Nafar e Mahmood Jrere são as três vozes dos Dam, um dos primeiros grupos a fazer rap em árabe, um hip hop de protesto que se mistura com os sons mais tradicionais da região e faz o público vacilar entre o estilo de dança que segue. Com eles, o Castelo de Sines incendiou-se num dos concertos mais memoráveis da 24.ª edição do já mítico Festival de Músicas do Mundo (FMM).
Um dos maiores prazeres do FMM – além do público gentil e civilizado que está ali para viver e deixar viver – é partir para os concertos “às escuras”. Sem conhecer as bandas ou fazer a mínima ideia do que vamos encontrar, deixamo-nos levar no enlevo da descoberta e da novidade. São raros os momentos em que se vê o público a cantar, conhecendo a letra do início ao fim (aconteceu no concerto de Salvador Sobral, com o tema Amar pelos Dois, que o músico introduziu assim de forma divertida: “Temo que esta seja a estreia de uma canção da Eurovisão no FMM”).
Na noite de quinta-feira, por exemplo, a “descoberta” da música dos suíços Orchestre Tout Puissant Marcel Duchamp deixou o público em delírio – uma orquestra de 14 músicos que encheram o Castelo de vida, com sons experimentais em que tudo fazia sentido, apesar da muita mistura de estilos. Este foi, até agora, um dos grandes concertos do FMM. E, logo a seguir, os Dam.
O amor e a guerra
Os Dam começaram em 2000. Viviam as influências de Tupac Shakur e não havia nada do género na Palestina. Era até difícil encontrar produtores musicais para a sua música. Ao longo destes 24 anos, as suas mensagens, explica-nos Maysa, não mudaram assim tanto, mas a “abordagem é completamente diferente”. “Amadurecemos”, acrescenta Tamer. “Continuamos a acreditar na igualdade, isso nunca muda, mas as camadas artísticas, as metáforas, as alegorias…”
Como em todo o hip hip, os seus temas são sociais e políticos, Mas também pessoais, diz Mahmood Jrere. “Por sermos palestinianos, as pessoas assumem que só falamos de política, mas somos humanos, falamos de amor também”. E, letras à parte, o amor encontra-se ainda na forma como os Dam juntam dois mundos no seu som muito próprio, deixando-se influenciar livremente pelas culturas árabe e ocidental.
“Algumas letras, sobre a liberdade e os direitos das mulheres… nunca se tinha ouvido nada assim no mundo árabe, nem mesmo nas músicas pop”, garante Maysa Daw, que recomenda uma das suas canções preferidas dos Dam: Freedom for my Sisters. Nesse tema, os cantores pedem desculpa por terem tratado de forma diferente o seu irmão e a sua irmã, fruto de um sexismo entranhado por todo o lado.
E sobre a guerra? “Quem dera que o tema tivesse mudado ao longo dos anos… bom, no último ano mudou bastante”, desabafa Mahmood, que vai buscar uma música de 2001 (Who is the terrorist?) para mostrar que podia ter sido feita agora. “Crescemos com isto na cabeça e naturalmente mexe com a nossa infância”, continua o músico, esperando que um dia possa dar uma entrevista em que o tema não venha à baila – significaria que a Palestina estaria em paz.
Hoje, sábado, 27 de julho, último dia do FMM, voltamos a ter a música da Palestina com a cantora Haya Zaatry, num registo intimista da folk acústica. E o programa segue cheio, da fantástica Mayra Andrade, de Cabo Verde, ao sírio Rizan Said. A música terminará ao nascer do sol.