Chega esta quinta-feira, 23, às salas de cinema o novo filme do realizador João Mário Grilo, Campo de Sangue, baseado no primeiro romance da escritora (e atual cronista da VISÃO) Dulce Maria Cardoso, publicado em 2002. Mas essa estreia vem acompanhada de polémica. O filme partiu de um guião assinado por Luís Mário Lopes que adaptava livremente o romance Campo de Sangue (incluindo, por exemplo, a própria escritora como personagem). No fim de 2016, João Mário Grilo mostrou interesse em trabalhar a partir desse argumento. Agora que o filme chega finalmente às salas de cinema, tanto a escritora como o autor do argumento original deram conta, através das redes sociais, da sua frustração e tristeza.
“Foi com base no guião do Luís Mário Lopes que autorizei que o realizador João Mário Grilo adaptasse o meu romance e me usasse como personagem. Amar profundamente o Luís e, acima de tudo, reconhecer a genialidade do argumento foram condições essenciais para eu ter aceitado entrar no eterno jogo de (des)encontros entre criaturas e os seus criadores”, escreveu Dulce Maria Cardoso um dia antes da estreia do filme. “Decorreram vários anos desde que autorizei a adaptação até agora. Durante esse tempo nunca o João Mário me comunicou formal ou informalmente qualquer vontade de modificar significativamente o argumento a ponto de exigir a alteração da autoria. No filme, o argumento surge como sendo da autoria de Luís Mário Lopes, João Mário Grilo e Inês Beleza Barreiros. O Luís só soube de tudo isto aquando do anúncio da estreia do filme. Eu só soube pelo Luís”, continua, antes de concluir: “Estou profundamente magoada com o desrespeito de que eu e o Luís fomos alvo. Lamento que esta ocasião, que deveria ser festiva, se tenha tornado tão triste para mim. Mesmo que o João Mário tivesse feito uma obra-prima, não aceito que valha tudo. Nem na vida nem na arte.”
Ainda antes, no passado dia 20, também Luís Mário Lopes tinha dado conta da sua insatisfação na sua página no Facebook: “Há anos, decidi adaptar ao cinema o romance Campo de Sangue, da Dulce Maria Cardoso. Percebi que o filme deveria ser, antes de mais, uma declaração de amor eterno à Dulce, enquanto escritora e enquanto mulher. Uma declaração de amor também à sua obra. No final de 2016, mostrei o guião ao João Mário Grilo, que quis realizá-lo. Continuei a trabalhar no guião para que Campo de Sangue pudesse vir a ser o melhor filme do mundo; assim o desejava eu”, escreveu. “Infelizmente, o João Mário acabou por filmar – vi agora – outra coisa qualquer. Perdeu-se quase tudo, a declaração de amor, a fronteira misteriosa – por vezes secreta – entre realidade e ficção, a indignidade da sobrevivência… Muito triste.”
Confrontado com esta tristeza e mágoa, João Mário Grilo, que há 13 anos não estreava um filme de ficção, diz-se “surpreendido e mesmo chocado”. Começa por esclarecer a génese do filme. Foi ele, como realizador, quem concorreu aos apoios do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) com este projeto (depois de noutras edições do concurso aquele guião/filme não ter sido selecionado para um apoio à produção). “Quando apresentei este projeto à apreciação do ICA tinha uma nota de intenções clara sobre o que o filme iria ser, e nunca me desviei dessa nota de intenções.” O facto de ser João Mário Grilo a concorrer, a partir do guião de Luís Mário Lopes, dá-lhe direitos de autoria sobre o filme, num pacto firmado entre “eu, ele e o ICA.” A questão da autoria é fundamental para João Mário Grilo: “Em nenhum contrato está definido que só Luís Mário Lopes podia assinar o guião na ficha técnica.” O realizador diz, mesmo, que se houvesse essa cláusula de exclusividade teria repensado o projeto e provavelmente não teria realizado Campo de Sangue. “Claro que o filme podia ser diferente a partir daquele mesmo guião, mas se o Luís queria fazer esse outro filme teria que o realizar ele, fazendo dele uma ‘declaração de amor’ ou não.”
Admirador da escrita da Dulce Maria Cardoso (“Desapiedada, com palavras que ganham muito peso e poder”) e reconhecendo que ficou fascinado pela ideia de Luís introduzir a própria escritora na narrativa, João Mário Grilo sublinha que muitas das alterações que introduziu são uma “homenagem ao romance, estão mais ligadas ao romance da Dulce Maria Cardoso do que estava o argumento original” e levaram o resultado final para um tom não tão “delirante e lírico.” A sua relação de trabalho com Luís foi “colaborativa e dinâmica até um certo ponto, quando o filme começou a tornar-se mais concreto e estrutural.” Recorde-se que João Mário, Dulce e Luís já tinham trabalhado juntos para a curta-metragem Não Esquecerás (de 2014), inspirada na tragédia de Entre-os-Rios. O realizador recorda uma atitude naturalmente “desprendida” da escritora em relação a adaptações de textos seus: “Há sempre uma base de confiança nestes processos.”
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Outra questão essencial para João Mário Grilo prende-se com a própria prática do cinema, nomeadamente na fase de montagem. “Eu filmei cerca de três horas para o resultado final de cerca de hora e meia de filme, filmei muito do guião original, mas o argumento de um filme encontra-se na montagem, o próprio filme vai dizendo o que é preciso e há sempre muitas coisas filmadas que ficam de fora.” No fundo, este Campo de Sangue que hoje chega às salas é a sua visão do romance, uma obra autoral de João Mário Grilo a partir do livro e do guião de Luís Mário Lopes. “É óbvio que não substitui o romance, a leitura do livro; e ele aí está, aberto a outras interpretações… Há quatro ou cinco Madames Bovarys [romance de Gustave Flaubert] no cinema, uma delas do Manoel de Oliveira.”
Sublinhando que, neste momento, “o importante é o filme”, o realizador lamenta que nem Dulce nem Luís tenham visto o resultado final, mesmo tendo sido convidados, afirma que esteve sempre disponível para qualquer conversa ou esclarecimento e recorda mesmo que a escritora e o autor do guião estiveram presentes durante um dia de rodagem do filme, no Algarve, podendo perceber como era a produção que estava em curso.
O filme Campo de Sangue é a primeira longa-metragem produzida exclusivamente pela APM – Ana Pinhão Moura Produções (“Um filme muito bem produzido”, elogia o realizador).
Sobre Campo de Sangue, escreve Manuel Halpern na edição desta semana da VISÃO: “O filme desprende-se do livro, desdobrando-o, ao transformar a escritora numa personagem e colocando o protagonista no seu enlace. Um golpe de asa pirandeliano que abre uma nova camada, entre o real e o onírico, mas mantendo sempre coerência interna e inteligibilidade, apesar dos dois planos se cruzarem e quase se confundirem. (…) O filme agarra e envolve o espectador como um thriller, tendo no centro um bom malandro lisboeta.”
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