Em Rio Mau (Penafiel), vive um velho que lê romances de amor.
E às vezes também chora.
Devora meia dúzia de livros por mês, incluindo policiais, aventuras de Júlio Verne, obras de Torga, Saramago ou Miguel Sousa Tavares. Fá-lo para passar o tempo. Ou esquecê-lo. “Pronto, já estás no escritório!”, provoca-o a mulher, operada aos ossos, acamada, quando o vê agarrado a páginas por descobrir, tão alheado do mundo em volta como quando dá de comer ao cão e às galinhas.
Manuel Castro tem 70 anos, a quarta classe, vista cansada, problemas na coluna, joelho de ferro e um AVC para contar.
Antigo operário metalúrgico numa fundição, foi guarda-redes amador, criou dois filhos, ganhou duas netas e um bisneto. Das meadas da vida sabe quase tudo. Dos enredos dos livros não tem com quem falar. “Ah, a família não se interessa e os da minha idade não leem…”, lamenta-se ao entrar no Café Bonanza, cujo nome ainda resgata memórias ao menino que começou por ler coboiadas.
Todas as manhãs, ele tem à espera a mesa de sempre, junto à janela, com o rio Douro em fundo, e por ali fica, com a chávena por perto, Record e Jornal de Notícias nas mãos. “Sempre gostei de ler, mas o dinheiro era pouco. Éramos seis irmãos, o meu pai carregava camiões de areia, a minha mãe estava em casa e tínhamos de trabalhar. Quem pensava em livros?”
Durante algum tempo, uma pequena biblioteca foi o seu refúgio. Até fechar.
Mas o vício das leituras ganhou lastro quando fez a tropa e já amealhava tostões.
É da geração dos livros ao domicílio, do Círculo de Leitores. Volumes que batiam à porta, acendiam nele uma luz interior, forte, e fascínios em dias sem história. Então viajava, folha a folha, tal como hoje. Mas o andar arrastado, a reforma e a doença do amor da sua vida já não o levam a lugar algum. “Gostava de ir ao Brasil, nunca saí daqui. Mas sempre li tudo o que aparecia. E agora mais, por causa da pandemia. Se não fossem os livros e as telenovelas, passava os dias a olhar para o nada.”
O momento alto da sua existência é quando o Bibliomóvel, do município de Penafiel, assoma ao largo da terra, na ponta extrema do concelho, 30 quilómetros bem contados a partir do centro da cidade. Ansioso, Manuel aguarda na paragem de autocarro, a curta distância de casa, a chegada dos livros sobre rodas, enquanto acena a Rui Guedes, 46 anos, ao volante do robusto veículo. “Já enfrentámos muitas crises, mas nunca falhámos a esta gente”, explica o rosto da biblioteca itinerante, escritor com obra publicada, de contos infantis ao mais recente, para adultos, intitulado Traço Contínuo. “O senhor Manuel é dos leitores mais fiéis. Fosse só ele e isto já valia a pena.”
O poder dos livros
Com um traço contínuo também se escreve a história do Bibliomóvel, criado em 2001 e adaptado para o efeito nos estaleiros da autarquia. Um parto difícil. “Colecionei algumas pérolas”, sorri Adelaide Galhardo, 57 anos, diretora da Biblioteca Municipal de Penafiel, recordando os engulhos iniciais para fazer vingar o projeto do qual foi mentora. “Um presidente de junta chegou a dizer-me que os livros iam distrair os alunos e havia quem considerasse tempo perdido deixar os volumes nos jardins de infância porque os miúdos não sabiam ler. Mas as mentalidades mudaram. E os pedidos são cada vez mais.”
Em julho deste ano, o Bibliomóvel percorreu 87 lugares das 28 freguesias, mais de 1 200 quilómetros. Distribuiu 122 livros e conquistou oito novos leitores. Antes da pandemia, os números eram superiores, claro. Em fevereiro, quase mil livros estavam dispersos pelo concelho, mas, nessa altura, as requisições da população escolar faziam disparar a contagem. Entretanto, as prioridades alteraram-se. Suspensos os contactos com a população escolar, o Bibliomóvel vai adaptar-se às circunstâncias. “Enquanto a pandemia se mantiver, adotaremos as bibliocaixas”, assegura Adelaide Galhardo, diretora da Biblioteca Municipal de Penafiel. “Uma vez por mês, deixaremos nos estabelecimentos de ensino caixas com livros higienizados e visitaremos mais vezes a comunidade dispersa pelo território, em alguns casos bastante isolada.” E vai continuar-se a sinalizar o caminho. “Se o Bibliomóvel faltasse, as pessoas iam sentir. Foi difícil chegar aqui, mas queremos alcançar cada vez mais pessoas e ir mais longe.”
Enquanto o Bibliomóvel serpenteia por estradas traiçoeiras, desafiando alturas, Rui Guedes embala as saudades do diálogo entretanto interrompido com as crianças a propósito destas leituras ambulantes. As memórias são a estrada e os relatos atropelam-se, capítulo a capítulo.
Certa vez, conta, um miúdo devolveu o volume da coleção Uma Aventura à carrinha da biblioteca itinerante e vinha uma moeda de 50 cêntimos colada dentro. Rui estranhou, mas a criança lá explicou: ouvira dizer na televisão que não havia dinheiro para a cultura e queria apenas ajudar.
No pico da crise iniciada em 2008, uma catraia entrou no veículo, escolheu um livro, pôs-lhe a mão no ombro, sentou-se no seu colo e pediu-lhe que o lesse. “Perguntei porquê e ela respondeu que o pai emigrara e ela já não tinha ninguém para lhe contar histórias antes de adormecer.”
Nessa altura, muitas crianças requisitaram livros de geografia. “Queriam saber onde ficavam os países para onde os pais tinham ido trabalhar.” Penafiel sangrou de gente empurrada para longe de casa, forçada a buscar sustento na construção civil, na metalurgia, ramos similares. “Muitos miúdos ficaram sem pai, foram momentos duros…”
Noutros tempos, Rui era procurado pela miudagem que chegava de mãos sujas e unhas encardidas, de esgravatar a terra. Fazia-o cedo, pela manhã, antes de rumar à escola. Agora aparecem-lhe os pais com galochas dos afazeres da lavoura, cobertas de lama e estrume. Descalçam-se à entrada do Bibliomóvel e vão escolher livros para os filhos. “Muita coisa melhorou, mas, para lá da visão romântica, isto nunca é chegar, ver e vencer”, atalha Rui Guedes. “Hoje, quem traz os filhos à biblioteca itinerante são muitos daqueles que eram crianças quando comecei, em abril de 2002. E há instituições seniores que aderiram já em tempo de pandemia.”
O Bibliomóvel ruma à serra da Boneca, curva, contracurva, onde se preservam recantos para baloiçar de olhos postos no Douro, lá das alturas. Para trás ficou o território dos apicultores. Ladeia-se o parque eólico, vislumbram-se cabras nos lameiros, entra-se nos misteriosos domínios da lenda do sobreiro que deu amoras, milagre associado a promessas de casamento feitas a rapariga virgem.
Na Avenida da Bela Vista, em Canelas, já espreita, à face da estrada, Conceição Vieira, 57 anos. Os filhos eram clientes do Bibliomóvel, ela inscreveu-se depois. “Hoje já não consigo viver sem livros. Quando não os tenho, parece que não ando bem. Se as histórias me agarram, nem dou pelo relógio. Um destes dias, até me esqueci de fazer o jantar. Só percebi quando o meu marido chegou a casa…”
Conceição entra na carrinha recheada de volumes, com origamis suspensos no teto, olhos reluzentes, ávidos, que nem os óculos nem a máscara disfarçam. “Os meus livros têm rodas”, costuma dizer aos amigos, orgulhosa, a ver se os entusiasma.
Os romances açucarados de Nicholas Sparks e da autoria do antigo presidente da Câmara de Penafiel, Alberto Santos, são, para ela, o mel de dias entretanto amargados pelo vírus que virou vidas e leituras de pernas para o ar.
Fez, com o Prémio Nobel, A Viagem do Elefante, e imaginou-se em lugares com os quais só pode sonhar. Mas foi um livro de Victoria Hislop a povoar-lhe os sentidos e a desassossegá-la. “Chama-se A Ilha e mexeu muito comigo por causa destes tempos”, explica. “Conta a história de leprosos abandonados numa ilha, sem família, esquecidos, e isso faz-me lembrar os idosos enfiados nos lares ou isolados, entregues à sua sorte e à morte por causa da pandemia. Os livros ajudam muito a compreender os outros e a olhar para dentro de nós”, assume.
Ela não é só de levar livros. Também traz.
Já emprestou o exemplar de Lendas, Mitos e Ditos de Portugal, de Hélder Reis, a Rui Guedes. Hoje, a conselho dele, afagará nas mãos, quais tesouros, O Evangelho Segundo Lázaro, de Richard Zimler, e a revista cultural Orpheu Paredes. Se o tempo ajudar, dará colo a páginas novas sentada no banco de madeira, à porta de casa, rodeada de plantas e flores, ou debaixo da enorme árvore carregada de quivis, no banco de pedra lambido pela sombra. “Por mim, o presidente da câmara até pode deixar de fazer algumas obras se o dinheiro faltar, mas tem de manter os meus livros com rodas.”
Laços e itinerâncias
Rui Guedes não é apenas o rosto do Bibliomóvel, elo de ligação com leitores isolados, carentes de narrativas que atenuem a solidão e as distâncias entre realidade e imaginários. O assistente técnico da Biblioteca Municipal de Penafiel mantém laços, partilhas e redes de contactos com outros tripulantes destas “naves voadoras”, reunidos no diretório de bibliotecas itinerantes na internet, criado por João Figueiredo, e inspirado naquela metáfora com asas. “Já foram mais de 70, mas agora estarão umas 30/40 a funcionar”, lamenta Rui, cuja dedicação a este ofício se inspira, igualmente, nas recordações do pioneiro serviço educativo da Fundação Calouste Gulbenkian, e nas histórias de outros como ele. Casos de Nuno Marçal, de Proença-a-Nova, do brasileiro Maurício Leite, criador da Mala de Leitura, ou de Filipe Lopes, do projeto de inclusão social em ambiente prisional A Poesia Não Tem Grades.
Em Figueira, Rui vai ao encontro de Alexandrina André, 63 anos, que aguarda, já impaciente, a chegada do homem dos livros.
Está carregada de volumes para devolver (Günter Grass, William Golding, Nabokov, Faulkner) e sacos de compras, quase a rebentar de peixe, fruta e hortaliças. Esperou um bom pedaço de tempo no portão do jardim de infância da terra, cujas crianças, dali a nada, sairão do almoço para o recreio, desta vez com o Bibliomóvel a alimentar-lhes a curiosidade. “Ó Rui, isto são horas?!”, protesta Alexandrina, desafiadora, mas de sorriso arreganhado. “Mais um bocadinho e o peixe ficava cozido aqui ao sol!”
Uma de oito irmãos, a artesã que transforma lixo em arte não mistura ódios com estimações. Preserva a tranquilidade, sempre ciosa das preguiças da criação artística. Não mora nas redes sociais, abomina a intrusão dos telemóveis, detesta “a autoajuda” literária de Paulo Coelho e os programas televisivos de domingo à tarde. Já sabia ler quando entrou para escola e sonhou ser matemática, qual bicho estranho num mundo que era suposto estar-lhe vedado. “As mulheres não liam”, lembra. “Mas eu era rebelde, não gostei da escola e desafiava os professores que batiam nas miúdas. Nunca quis a vidinha caseira que estava reservada às raparigas da minha idade, todas meninas prendadas à espera de se casarem com maridos ricos.” O avô materno, cuja família possuía casas de lavoura, assinava jornais e revistas, escrevia o seu diário em papel de sebenta e possuía vasta biblioteca com obras em latim, deu um empurrão. “Ajudou-me a cultivar o gosto pelos livros e pelo desconhecido, mas também não me deixava ler certas obras. A Ceia dos Cardeais, do Júlio Dantas, foi uma delas. Havia limites”, sorri.
Libertou-se cedo de amarras familiares e rumou a Paris, em 1977. Aí viveu cinco anos, “pintou a manta”, fez de tudo e nunca se deixou afetar pela forma como os indígenas escorraçavam portugueses ou esfarrapavam a dignidade de quem lá chegara em busca de sobrevivências. “Sempre lidei mal com os franceses, estão sempre a fazer juízos de valor.” Vivida, calejada e de regresso, Alexandrina especializou-se na área da ação social, estendendo as mãos aos “miseráveis” enxotados e acantonados nos bairros mortificados do Porto. “Aprendi muito sobre a humildade que devemos ter na vida e os livros também ajudaram”, confessa, a caminho do coreto da freguesia, para a fotografia, enquanto fala de cinema francês, Balzac, Tolstoi, Saramago, García Márquez, Luis Sepúlveda e João de Melo, cujos traços, angústias e grilhetas do País de Gente Feliz com Lágrimas conheceu bem, sofridos na pele.
Despede-se carregada de novas leituras, agora mais leves, para as semanas que se seguem, entre elas Um Violino na Noite, de Jojo Moyes, e um volume com os atrevimentos picantes das protagonistas da série O Sexo e a Cidade.
Rui Guedes, esse, voltará em novembro e pode ser que, até lá, ela se decida a cozinhar o seu afamado e prometido arroz de frango, que as histórias do Bibliomóvel sempre puxam outros andamentos. E apetites.