Faça chuva ou faça sol, a fila à porta da Livraria Lello não desaparece, esticando-se pela Rua das Carmelitas abaixo, desde há uns meses fechada ao trânsito acautelando-se a segurança. Quem chega, atraído pelas obrigatórias referências nos guias turísticos ou na Imprensa internacional, sabe o que tem à espera. “Já vinha preparada para a confusão”, diz Maria da Glória, de Belo Horizonte, a fazer a sua segunda visita ao Porto. “Fiquei encantada. É tudo muito lindo e colorido”, elogia, no doce sotaque brasileiro, indiferente ao tempo de espera, ao controlo das mochilas, à multidão no interior ou às imparáveis selfies. Na mão, leva um livro infantil sobre a história da livraria e um exemplar d’Os Lusíadas, para sortear entre os amigos do clube de leitura a que pertence.
Para chegar ao piso superior, é preciso interromper, por várias vezes, o passo na famosa escadaria carmim e ser paciente com o tráfego de turistas, em disparos fotográficos constantes. Na Sala Gemma, mais reservada, com as portadas de vidro a permitirem uma vista ampla para os belíssimos pormenores arquitetónicos da livraria, aguarda-nos Aurora Pinto, administradora e mulher de um dos sócios maioritários da Lello, o investidor imobiliário Avelino Pedro Pinto (com 51% da sociedade; os restantes 49% pertencem a José Manuel Lello, bisneto de um dos fundadores). Quando entraram na sociedade, em 2015, uma das primeiras medidas que implementaram foi a cobrança da entrada – que atualmente é de €5, um valor dedutível na compra de livros. “As pessoas vinham, tiravam fotos e iam embora… Com o voucher, pretendíamos que nos vissem não só como uma joia mas também como uma livraria. E queríamos regular o fluxo. Na verdade, trouxe mais gente…”, admite a administradora. Em 2018, receberam 1,2 milhões de visitantes (uma média de 3 300 entradas diárias) e ficaram no topo das atrações turísticas do Porto. A vontade é que estes se transformem em leitores. “Essa missão, às vezes, fica comprometida por causa desta avalanche, mas não vamos dizer a quem chega para se ir embora… Vivemos um bocadinho essa angústia”, reconhece Aurora Pinto. Até já adotaram o slogan: “Quem vai a Roma, quer ver o Papa; quem vem ao Porto, compra um livro na Lello.”
Os números são animadores. Em 2016, apenas 30% dos visitantes deduziam o voucher e, atualmente, já são mais de 50 por cento. Em agosto deste ano, a livraria bateu o recorde de vendas, uma média de 2 300 livros por dia – em 2015 não chegavam aos 300 exemplares. “Somos, seguramente, a livraria nacional com maior número de vendas em literatura portuguesa traduzida. Camões, Saramago, Camilo, Eça… Somos os seus grandes exportadores e divulgadores.” Muitos títulos pertencem à coleção lançada pela própria livraria (ver caixa) com edições em quatro línguas (português, espanhol, francês, inglês e, em breve, mandarim e russo). Também vendem autores recentes, como Valter Hugo Mãe e Gonçalo M. Tavares. Já o cartão amigo, com um valor anual (€30 ou €40 por família, também dedutíveis em livros), a pensar nos portuenses, não teve grande repercussão, com apenas mil cartões atribuídos. “Não fizemos muita divulgação”, justifica Andreia Ferreira, do Departamento de Marketing e comunicação. Uma migalha naquilo que foram os resultados líquidos da sociedade em 2018, mais de 2,8 milhões de euros, um crescimento impressionante de 48% em relação a 2017.
O efeito “uau!”
Nos últimos anos, empurrada pelo boom turístico do Porto, a Lello foi repetidamente colocada nas listas das livrarias mais bonitas do mundo. “O que me dá mais prazer é estar ali junto às escadas a olhar para quem entra e ouvi-los a dizer ‘uau!’”, sublinha Aurora Pinto.
As origens remontam a 1869, ano da fundação da Livraria Internacional de Ernesto Chardron, conhecida pela publicação de algumas obras de relevo, entre as quais de Camilo Castelo Branco e de Eça de Queirós. Em 1894, foi adquirida pelos irmãos José Pinto de Sousa Lello e António Lello, cultos e amantes de literatura, que já possuíam um negócio de livros na Rua do Almada. A casa cresceu com lançamentos de sucesso e a aquisição dos fundos de outras empresas. “Ser editado pela Lello era prestigiante, até porque tinha ligações ao Brasil”, conta Germano Silva, historiador do Porto. Em 1906, os irmãos decidiram avançar com a construção do agora famoso edifício na Rua das Carmelitas, onde reuniram a atividade livreira e editorial.
O arrojo e a visão de futuro do engenheiro Francisco Xavier Esteves – o responsável pela conceção do edifício foi, também, o primeiro presidente da Câmara Municipal do Porto do regime republicano – corresponderam à ambição dos proprietários, desejosos de ali criarem uma catedral das Letras e da Cultura. Na imponente fachada rendilhada em estilo neogótico, inspirada no Mosteiro da Batalha, exibem-se, de cada lado da janela central, duas figuras da autoria de José Bielman, representativas da Arte e da Ciência. Entre os riquíssimos pormenores da decoração interior, a escada ornamental, a lembrar a popa de um barco, domina as atenções. Nos pilares, figuram os bustos de ilustres homens das Letras: Eça, Camilo, Antero de Quental, Tomás Ribeiro, Teófilo Braga e Guerra Junqueiro. No teto, em gesso trabalhado e pintado a imitar a madeira talhada, destaca-se um enorme vitral com a divisa em latim “Decus in labore” (“Dignidade no trabalho”).
A inauguração, em janeiro de 1906, teve grande cobertura na Imprensa nacional e além-mar e foi marcada pela presença de grandes individualidades, como os escritores Guerra Junqueiro e Júlio Brandão, o fotógrafo Aurélio da Paz dos Reis (o precursor do cinema em Portugal, que registou o momento para a posteridade), o político Afonso Costa ou o escritor, político e diplomata Abel Botelho. “Tornou-se um local de tertúlias, sobretudo da elite republicana”, adianta Germano Silva. Nas últimas décadas, fruto das grandes transformações do comércio livreiro, passou por momentos difíceis. Aurora Pinto recorda o cenário negro aquando da entrada na sociedade. “A livraria estava tecnicamente falida, a precisar de obras, decadente… era uma dor de alma”, confessa. “Tivemos a possibilidade de agarrar uma coisa que estava a esmorecer, puxá-la para cima e ligar-nos a este elemento identitário da cidade.” Entre 2017 e 2018, fizeram obras no valor de dois milhões de euros, do chão ao telhado, passando pelas infraestruturas e pela reabilitação arquitetónica. A retirada de 12 camadas de tinta levou à descoberta das cores originais da fachada, mais vivas do que os tons monocromáticos conhecidos. O edifício renasceu e conseguiu, de alguma forma, recuar ao que era em 1906.
A Pottermania e o fim do mito
Porque não está em Hogwarts? Desde quando tem barba? Onde é que guardou a varinha mágica? Quando é que a escada se move? Anthony está habituado a ser bombardeado por estas e muitas outras perguntas feitas pelas crianças que o avistam na Livraria Lello. As semelhanças entre Harry Potter e o funcionário são reforçadas pelas vestes, pelos característicos óculos redondos e, sobretudo, pela energia com que o ator encarna a personagem. “Estou cá há meio ano e não fui diretamente selecionado para este trabalho, mas a maneira como o fiz agradou e fui destacado para o papel”, conta. Leu todos os livros escritos por J.K. Rowling e viu todos os filmes da saga, por isso sente-se muito confortável com este universo. Na pequena sala reservada pela Lello a Harry Potter, sucedem-se as fotografias e as conversas mantidas por Anthony em quatro línguas. “Estou a aprender à quinta e à sexta; o que custa mais é esta interação constante com os visitantes”, diz.
O facto de a autora britânica ter vivido no Porto, em 1992 (onde foi professora de Inglês e teve uma relação conturbada com um português, pai da filha mais velha), e, supostamente, ter frequentado a livraria enquanto preparava o primeiro manuscrito das aventuras de Harry Potter, levou a muitas extrapolações sobre as semelhanças entre a arquitetura da Lello e os edifícios da escola de magia de Hogwarts.
Contudo, a confirmação junto de J.K. Rowling sobre essa ligação inspiracional à Lello nunca foi feita. “Sabemos que não é fácil contactá-la e que a história dela no Porto não foi feliz. Por outro lado, para quê? Não é melhor, às vezes, viver uma lenda, uma ilusão, do que saber a verdade? Eu não tenho dúvidas de que quem aqui entra, fica a olhar para a escadaria e vê Hogwarts. Às vezes um mito vale mais do que mil verdades. Os livros também são ilusão, magia”, diz Aurora Pinto, da administração da Lello.
À VISÃO, a relações-públicas de J.K. Rowling, Rebecca Salt, deu uma resposta concisa: “Os lugares ficcionais dos livros de J.K. Rowling vieram, sobretudo, da sua imaginação. Tanto quanto sabemos, ela nunca disse que a Livraria Lello serviu de inspiração para algum lugar nos livros de Harry Potter.” Quando Aurora e Pedro Pinto entraram na sociedade, em 2015, desenvolveram um estudo com uma consultora internacional para tentar perceber, dentro do número de visitantes, quem vinha à Livraria Lello por força dessa associação a Harry Potter. “Era um valor abaixo dos 10%, um número incipiente. A verdade é que as pessoas continuaram a fazer essa forte ligação, e nós não a negamos”, diz Aurora Pinto. Sucederam-se, aliás, as iniciativas da livraria à volta desse universo, cavalgando a onda da Pottermania.
Caça aos tesouros
A cada 13 de janeiro, data do aniversário da livraria, a administração tem aproveitado para anunciar as linhas mestras da programação anual, com atividades culturais como exposições, lançamentos de livros e leitura para crianças. Em 2019, apresentaram uma proposta fora da caixa, o lançamento de uma oferta pública de aquisição sobre as primeiras edições de três obras: Os Lusíadas, para a qual ofereceram €250 mil, mas não encontraram vendedor; A Gazeta da Restauração, primeiro jornal português de publicação regular (1641), comprado por €3 500, como homenagem aos jornalistas; e Harry Potter e a Pedra Filosofal, na edição inglesa, o primeiro livro da saga escrita por J.K. Rowling, lançado em 1997, adquirido por €70 mil a um proprietário cujos avós frequentavam a mesma igreja que a autora e que a quiseram ajudar no início da carreira, comprando-lhe um exemplar por 10,99 libras – uma boa ação amplamente retribuída. “Trouxemos o mundo financeiro para o mundo dos livros e mostrámos que estes podem ser bons investimentos”, defende Aurora Pinto. Um trabalho para continuar, com uma comissão técnica de especialistas e uma funcionária permanentemente atenta às raridades que vão surgindo no mercado. A Sala Gemma, atualmente fechada ao público em geral, é dedicada ao culto do livro, onde estão guardadas primeiras edições, bem como livros raros e edições atuais de obras de luxo. “Chegámos a abrir a sala durante uns meses, mas verificámos que causava outro constrangimento na livraria: a criação de uma nova fila”, explica Aurora Pinto. Hoje, as visitas funcionam por marcação ou por convite, caso os livreiros espalhados pela livraria identifiquem alguém com um genuíno gosto por livros antigos.
O poder financeiro da sociedade ficou bem evidente, em maio, com a compra por 3,5 milhões de euros do Teatro Sá da Bandeira, em hasta pública (adquirido em 2017 pela Câmara do Porto, para garantir o uso cultural do edifício). Esta é a sala de espetáculos mais antiga do Porto, com atividade praticamente ininterrupta desde a sua fundação, em 1874. “É um projeto que tem a nossa cara, mas ainda não temos um plano definido sobre o que iremos fazer; estamos a partir pedra”, diz Aurora Pinto. Para já, revela apenas a ideia de haver “uma ligação ao mundo dos livros, a fazer a ponte com a Lello”.