Desde que a Covid-19 começou, a sua negra itinerância é captada ao minuto nos ecrãs, sejam de televisão, computador, telemóvel ou câmaras fotográficas. Uma dieta informativa e visual capaz de testar a resistência psicológica até dos mais treinados. Mas a verdade é que os seres humanos, sobretudo os europeus, estão, há muito, habituados a contemplarem imagens dedicadas a terríveis pestes, vírus e pandemias de todos os géneros. Pelo menos, nos museus e nos livros dedicados à história de arte. Da antiguidade à época medieval, da Renascença à contemporaneidade, grandes artistas que integram o cânone pictórico demonstraram o seu desejo de reproduzirem na tela a realidade do seu tempo, as doenças que assolaram os seus vizinhos, as feridas causadas por razões misteriosas, as perdas de vidas humanas, o confronto com a mortalidade.
Em 1624, o artista flamengo Antoon van Dyck (1599-1641) acabara de se mudar da confortável Génova, onde residia após ter deixado a confortável casa familiar pertencente ao pai, comerciante próspero de sedas e especiarias, para a vibrante Palermo na região da Sicília. Imediatamente após a sua chegada, a cidade italiana foi atingida por um surto de peste que devastou a maioria da sua população e conduziu à instauração da lei marcial, após a morte do vice-rei, infetado pela doença. Van Dyck, obrigado a ficar de quarentena, teve a mesma reação de qualquer fotojornalista contemporâneo: registar o que estava a acontecer perante os seus olhos. Durante um ano e meio, ele produziu uma série de pinturas devocionais em que fica patente o desespero, mas também a esperança, dos seus concidadãos. Dedicadas à santa padroeira de Palermo, Santa Rosália, estas obras continham um elemento comum: a pintura de uma caveira, símbolo tradicional do caráter transitório da vida.
Outros artistas deixaram testemunhos colados à biografia, às lutas íntimas igualmente desencadeadas por epidemias aparentemente incontroláveis. Na pintura A Família (1918), o expressionista austríaco Egon Schiele (1890-1918) retrata-se, esquálido e de rosto cavo, ao lado da mulher e do filho por nascer. A obra ficou inacabada devido à morte do casal, vitimado pelo vírus da gripe espanhola. Do universal à intimidade, a arte dedicada às pandemias é um arquivo precioso, que tem documentado quer os efeitos da peste negra do século XIV (também designada como peste bubónica, responsável pelo desaparecimento de 75 a 200 milhões de pessoas na chamada Eurásia) quer os efeitos traumáticos da geração afetada pela pandemia da sida identificada nos anos 1980. E, por isso mesmo, constitui-se como um acervo revelador dos sentimentos de isolamento, discriminação, intolerância, mas também da militância e da capacidade de superação humana.
Ver uma representação pictórica sobre uma pandemia que afetou a história das sociedades recorda-nos que não estamos sozinhos, nem nunca estivemos, seja neste século ou nos anteriores, a enfrentar grandes batalhas. É uma jangada a que todos podemos subir, quando confrontados com uma tempestade: a contemplação pode ser terapêutica, pedagógica, perturbadora, catártica, esperançosa, inspiradora. Só o tempo dirá como esta pandemia da Covid-19 será recordada através das obras de arte. Mas o passado está cheio de exemplos que revelam as lutas e as conquistas dos nossos antepassados em tempos de pandemia. Conheça algumas destas pinturas icónicas:
São Roque ajudando as vítimas da peste no Lazaretto (1549), de Jacopo Tintoretto
Esta pintura integra o vasto conjunto de obras e frescos realizados para a Igreja de São Roque por Tintoretto (1518-1594), nascido Jacobo Robusti que ganhou a alcunha artística devido à profissão do pai, tintureiro. As suas marcas artísticas estão presentes: o uso dramático da luz, a perspetiva ousada, que o transforma, segundo os académicos, num precursor do Barroco. Mas esta representação de enfermos, socorridos por várias mulheres que não chegam para tantos doentes, nas galerias do Lazzaretto Vechio, em Veneza – onde eram abrigadas as vítimas da peste no século XVI – fazem pensar, de alguma maneira, nas atuais enfermarias sobrecarregadas pela Covid-19…
O Triunfo da Morte (circa 1562), de Pieter Bruegel, o Velho
Obra rica em detalhes, hoje patente no Museu do Prado, em Madrid, é uma das mais assombrosas representações sobre a devastação coletiva associada a uma pandemia, seja antiga ou contemporânea. O mestre holandês Pieter Bruegel (1525- 1569), expoente da pintura renascentista flamenga, imaginou um exército de esqueletos, comandados pela própria Morte a cavalo, que fazem uma violenta investida numa terra queimada em cujo horizonte se identificam navios naufragados. Em fuga ou capitulação, impotentes perante o ataque, são visíveis pessoas de todas as classes sociais: camponeses e nobres, soldados e cardeais. Uma guerra.
Santa Rosália intercedendo pela Palermo atacada pela Peste (1624), de Antoon van Dyck
A quarentena obrigatória levada a cabo pelo artista flamengo inspirou a produção de uma série de quadros dedicados ao tema da epidemia que grassava então na cidade italiana. Mas em vez de pintar a morte dos seus vizinhos de infortúnio, Antoon van Dyck preferiu criar uma obra (hoje guardada no The Metropolitan Museum de Nova Ioque) dedicada à esperança e ao otimismo da superação da crise. Os restos mortais da Santa Rosália, morta em 1168, tinham sido descobertos recentemente no Monte Pellegrino, e o pintor rodeia-a de luz, colocando esta elevação montanhosa e o porto de Palermo ao fundo da tela.
A Peste dos Filisteus em Ashod (1661), de Pieter van Halen
A presença da peste está refletida nos gestos da multidão representada no quadro: tapam o rosto, o nariz, a boca, numa tentativa de evitar a inalação da doença. No chão, há vários corpos de vítimas; ao fundo, observam-se os cadáveres envoltos em panejamentos a serem carregados para cerimónias fúnebres. Inspirado numa obra de Poussin dedicada ao mesmo tema, o flamengo Pieter van Halen (1612-1687), que deixou poucos trabalhos, recriou a história de uma pandemia antiga, narrada no Velho Testamento: a praga divina enviada aos filisteus como castigo por terem roubado a Arca da Aliança ao povo de Israel.
Peste (1898), de Arnold Bocklin
Influenciado pelo romantismo, conotado com o simbolismo, as obras do suíço Arnold Bocklin (1827-1901) revelaram uma obsessão com os temas da morte e do misticismo. Segundo os académicos, esta obra foi inspirada nas notícias sobre a deflagração da peste bubónica em Bombaim, na Índia, em 1898. A Morte, transportada numa criatura alada que evoca as asas de um morcego, e rodeada por cores esverdeadas, simbolicamente associadas à doença, espalha a pestilência e faz vítimas… numa cidade medieval europeia.
A Família (1918), de Egon Schiele
Nesta obra representativa do expressionismo praticado pelo artista, este retrata-se com a mulher (e com uma criança inspirada no seu sobrinho), nus e fragilizados, já rodeados pela escuridão. No fim da Primeira Guerra Mundial, a gripe espanhola que assolou a Europa, reclamando milhões de vítimas, bateu à porta do pintor austríaco. Egon Schiele (1890-1918) conquistara então o reconhecimento como artista, casara pela segunda vez com Edith Harms e, com a gravidez de seis meses desta, preparava-se para ser pai. A Família ficou inacabada, já que o vírus, veloz e contagiosos, vitimou ambos, com apenas três dias de diferença.
Auto-retrato com Gripe Espanhola (1919), de Edvard Munch
Sentado numa cadeira, protegido no abraço de um comprido robe de chambre, as mãos pousadas no colo aconchegado por uma manta, o rosto de Edvard Munch (1863-1944) mostra-se esvaziado de expressão e sem energia. O pintor olha diretamente para o observador (para nós? Para fora da sala? Para o mundo exterior?), e o seu profundo isolamento é palpável. Mais reconhecido pela célebre pintura O Grito, o artista norueguês revelou assim o seu embate com a gripe espanhola, a que sobreviveu.
Ignorância = Medo/Silêncio = Morte (1989), de Keith Haring
Poster icónico na produção do artista americano, que nunca perdeu de vista as suas incursões iniciais no grafiti e o seu gosto pelas cores fortes e figuras dinâmicas, revela uma versão do popular adágio “Não ver, não falar, não escutar”, pontuado pelo triângulo cor de rosa, símbolo LGBT concebido nos anos 1980. É uma obra exemplar do ativismo cívico, artístico e político praticado por Keith Haring (1958-1990), centrado na defesa dos direitos da comunidade LGBT e na consciencialização dos efeitos da pandemia da sida, tendo ele próprio sido diagnosticado com o vírus em 1988. A pandemia, cujos primeiros casos foram detetados em 1981, soma mais de 78 milhões de infetados e mais de 35 milhões de mortos, ao longo das últimas quatro décadas.
Vestido peste (2018), de Anna Dumitriu
A artista britânica especializada em Bioarte criou este Plague Dress, inspirado no vestuário característico de 1665: realizado em fio de seda tingida com cascas de noz, alude ao botânico inglês Nicholas Culpeper (1616-1654), autor de tratados de plantas medicinais, que recomendava o uso de nozes como tratamento para a peste negra. O enchimento utiliza ramos de lavanda, que eram usados durante a grande praga de Londres para abafar o cheiro da infeção e prevenir a doença causada, acreditavam, pelo “mau ar”. Os bordados do vestido foram também impregnados com o ADN da bactéria causadora da peste (yesinia pestis bactéria). Como? O material foi extraído de um exemplar morto no laboratório da National Collection of Type Cultures (a primeira coleção bacteriológica do mundo), onde Anna Dumitriu, 51 anos, fez uma residência.