Do outro lado do telefone ouve-se uma sonora gargalhada, dada a mais de seis mil quilómetros de Lisboa. Angel Olsen está em Asheville, Carolina do Norte, na Costa Leste dos EUA, para onde se mudou há meia dúzia de anos. A reação bem-disposta foi desencadeada pela proposta de um exercício de dificuldade elevada: seria Angel Olsen fã da sua música se não fosse a sua autora? “É difícil imaginar se eu pararia caso me cruzasse com o meu trabalho… Não sei se andaria pelo mundo a ouvir as minhas canções, não por achar que não sejam boas mas porque ouço pouca música atual. O que eu gosto realmente de ouvir é música mais antiga, como jazz ou swing”, confessa, divertida, contrariando a aura triste e depressiva que muitas vezes lhe é associada, fruto da intensidade das suas composições.
Aos 32 anos, a sua paixão pela “música antiga” resulta do fascínio pelas canções da infância e da juventude dos seus pais, vividas entre as décadas de 30 e de 50 do século passado – a cantora, compositora e guitarrista originária de St. Louis, Missouri, foi adotada aos 3 anos por um casal que passava muitas vezes por seus avós.
Esta viagem musical no tempo é audível no seu quinto álbum, All Mirrors, que combina o classicismo orquestral com a contemporaneidade dos sintetizadores – desta vez, as guitarras estão em segundo plano –, sublinhados por uma voz sempre dramática, nunca histriónica. É fácil imaginar as canções de All Mirrors a brilharem no cinéma vérité de John Cassavetes, mas também nos guiões surrealistas de David Lynch. Aliás, o subconsciente desempenhou um papel importante no seu processo criativo: “Acedi a uma parte do meu cérebro que ainda não tinha experimentado: nunca tinha escrito sobre sonhos ou usado melodias sonhadoras.”
Sobre a atmosfera cinematográfica do disco, confessa: “Sempre quis fazer algo assim.” Para isso, contou com a colaboração de dois autores de bandas sonoras, os músicos Jherek Bischoff e Ben Babbitt, especialistas em arranjos de cordas. “Ambos foram brilhantes ao criarem um ambiente para as minhas letras”, conta à VISÃO.
Jogo de espelhos
Com tanta teatralidade, é inevitável questionar se Angel Olsen é a atriz do seu próprio filme. “Muitas pessoas na minha vida querem que eu seja atriz, mas não sou alguém que deixe os outros decidirem por mim”, garante.
Angel Olsen rendeu-se a este jogo de espelhos entre realidade e ficção. “Há sempre um pouco de nós em tudo o que fazemos, quer os escritores queiram admitir quer não. Para perceber a profundidade de um sentimento, seja ele qual for, é preciso experienciá-lo de alguma forma. Mas se o representamos da forma exata como aconteceu, já é uma decisão nossa”, clarifica, antes de acrescentar: “Muitos dos pontos de referência que utilizo são hiperbolizados e desproporcionados. É isso que fazemos nas canções, tornamo-las exageradas e dramáticas, assim é que é divertido.”
Agora, em vez de se irritar quando os fãs assumem que todas as suas letras são autobiográficas, diverte-se: “É sempre engraçado quando as pessoas imaginam sobre o que são as minhas canções, normalmente é sempre mais interessante do que aquilo sobre o que realmente são… Estou bastante pacificada com o facto de pensarem que é sobre a minha vida real.”
E ninguém pode censurar os fãs por isso. Afinal, em pouco mais de 30 anos, a artista tem tido um percurso preenchido. A mais nova de oito irmãos, muitos deles já adultos quando Olsen era criança, cresceu quase sem se lembrar que era adotada. Teve aulas de piano e de guitarra e, aos 10 anos, já brincava com um gravador de cassetes. Na adolescência descobriu que sofria de problemas de tiroide, que se manifestavam em pneumonias recorrentes e flutuações de peso. Na mesma altura, viveu o choque da morte de um dos melhores amigos, diagnosticado com esquizofrenia.
Aos 20 anos, mudou-se para Chicago e envolveu-se na cena musical da cidade. Antes de se lançar a solo, pertenceu à banda do aclamado músico folk Will Oldham, mais conhecido como Bonnie Prince Billy. Seria o seu terceiro disco em nome próprio, My Woman (2016), a catapultá-la para o estrelato do universo indie rock. Na altura, o título do disco foi visto como uma afirmação feminista. “A atmosfera política contribuiu para essa interpretação e não é que eu tenha medo ou vergonha da palavra feminista, mas pareceu-me uma interpretação demasiado literal; queria que o álbum fosse ouvido por aquilo que ele realmente era”, esclarece.
Angel Olsen encontra em My Woman alguns vestígios que já faziam adivinhar a sonoridade do novo disco, apesar do contraste evidente entre ambos – sofreu um grande desgosto amoroso pelo meio. “Talvez a Intern sugerisse a canção All Mirrors, há alguma relação entre as coisas, mas elas nunca são exatamente as mesmas. Nunca faço nada que seja uma repetição. Não estou muito preocupada com soar igual ou não; mas, se soasse sempre ao mesmo, a minha vida seria muito mais fácil”, atira, antes de soltar nova gargalhada.
O processo de criação, confirma, é bastante caótico. “É aquela história clássica do escritor que combina ir jantar fora com os amigos, dez minutos antes surge uma ideia e, de repente, já passou meia hora e está atrasado porque esteve a escrever uma canção… Isso é o tipo de coisa que me acontece. Mas os meus amigos mais próximos atrasam-se tanto quanto eu”, graceja.
Uma informação que talvez os amigos portugueses possam confirmar. Há uma década que a artista visita Portugal e, agora, regressa para três concertos esgotados. Hoje, 22, e amanhã, 23, no Capitólio, em Lisboa (com produção da Galeria Zé dos Bois, com a qual mantém um relação especial) e na sexta-feira, 24, no Hard Club, no Porto. “Lisboa é como uma segunda casa, vou agora passar aí uma semana”, revela.
Confessa-se fã de Amália Rodrigues – “adoro o trabalho dela” – e o fado faz parte da sua rotina lisboeta. “Se há algo com que me identifico no fado é com uma certa tristeza que reconheço nas minhas próprias canções.” Angel Olsen também tem Amália na voz?