Tinha 37 anos quando, no final de 2014, para surpresa de muitos, ele próprio incluído, foi anunciado como novo diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII). Agora tem 41 e trabalho para mostrar.
A abertura do imponente edifício a toda a gente continua a ser uma das suas prioridades. Um processo bem–sucedido em curso, como se viu no arranque da temporada 2018/19 com vários acontecimentos de entrada livre.
Este ano, recebeu o Prémio Europa de Teatro Realidades Teatrais (iniciativa criada em 1986 pela Comissão Europeia) que celebra o seu percurso sem fronteiras, com experiências profissionais na Bélgica, em França e em Itália, por exemplo. É provável que, na Rússia, diga algo parecido ao que disse à VISÃO numa sala de trabalho, sem janelas, do Nacional: “A livre circulação de ideias, que não é garantida só pelos artistas mas que precisa dos artistas para poder acontecer, escapa à linguagem institucional e burocrática europeia, à qual falta democracia de uma forma assustadora.”
Sente-se um artista na cadeira do poder?
Estar numa direção artística passa por exercer poder. E isso foi uma condição que eu aceitei. Acho muito importante haver artistas à frente de instituições culturais públicas, com a responsabilidade de decidirem sobre meios de produção que, em última análise, vão ser usados por artistas. E no caso de teatros públicos, a pensarem não só na soberania da criação mas também na ponte que a criação livre tem de fazer com o público e a sociedade. Nesse sentido, aquilo que poderia ser o pudor em aceitar um lugar de poder não é suficiente para me fazer recusar a responsabilidade, o privilégio, a fortuna, de poder ser um desses artistas.
Mas, na prática quotidiana, na sua cabeça, consegue dividir e organizar as duas coisas: o lado artístico, de criador e autor, e o lado, certamente mais burocrático, de diretor de um grande teatro, gerindo equipas e orçamentos? Exige muita disciplina?
Para mim, isso não é um grande problema. Às vezes, até é benéfico que as coisas se misturem. E outras vezes, como em qualquer coisa na vida, temos de dizer: “Neste momento, só isto é importante!”. Posso estar a trabalhar num espetáculo e o facto de ser diretor artístico tem implicações nesse trabalho, e muitíssimas vezes o facto de ser artista tem implicações na forma como cumpro o meu cargo na direção artística. Às vezes, claro, é preciso separar as águas, sobretudo na criação, e… parar tudo. Mas tenho a sorte de trabalhar com uma equipa extraordinária e numa casa que tem uma cultura de respeito pelo momento de criação de um espetáculo, a concentração necessária, o processo de tentativa e erro, as experiências… Já quando tinha a minha companhia, o Mundo Perfeito, fazia os meus espetáculos mas passava 70% do tempo a procurar as condições financeiras e logísticas para poder fazê-los. Agora, se calhar, 70% do meu tempo é passado a pensar uma programação, a tentar gerir os meios de produção, a pensar nos convites a fazer e nas propostas que nos chegam, a pensar um calendário… É um exercício muito mais feliz e ligeiro.
Tem um lado de responsabilidade grande, mas não há aquela ansiedade de tentar arranjar maneira de conseguir fazer as coisas. É um exercício muito livre, e feliz, de poder partilhar recursos com outros artistas, de abrir portas. Entre o que tinha antes e o que tenho agora, se há uma coisa que eu não faço é queixar-me.
Esta é a sua “cadeira de sonho”?
A direção artística do Teatro Nacional não é um lugar no qual eu alguma vez tenha pensado, até me terem pedido para pensar na possibilidade de o ocupar… Nunca me vi a dirigir uma instituição, nem sequer a ter uma casa, um teatro a que pertenço. Sempre pensei que o meu percurso enquanto artista só poderia passar por ser convidado nessas casas públicas de teatro. Não diria “cadeira de sonho” porque nunca sonhei com ela. O convite de vir para o Teatro Nacional foi muito surpreendente para mim. E vi nesse convite a vontade de arriscar um outro projeto artístico para esta casa, pela minha idade, a minha experiência, o tipo de trabalho que faço. Esse desafio seduziu-me bastante. Nunca o vi como um projeto individual mas necessariamente coletivo: o que é que nós podemos transformar no Teatro Nacional, no teatro português, mas também na sociedade portuguesa com esta ferramenta, com 172 anos mas muito eficaz, muito forte?

José Carlos Carvalho
Mas como tem sido conciliar o seu lado de artista muito criativo e sempre cheio de projetos com a lógica de diretor artístico num projeto de serviço público?
Ser diretor artístico de um teatro nacional passa também por continuar a fazer o nosso trabalho artístico numa casa. Nesse sentido, nunca olhei para a minha vinda para este teatro como algo que me privasse de desenvolver a minha prática artística. Mas há um contexto, claro. Estou a ouvir a minha voz artística, mas de uma forma aberta à intervenção dos outros.
Não se pode dizer que estão a ficar muitas coisas na gaveta por ser diretor do TNDMII, então…
Há muitos convites a que tenho de dizer não porque são incompatíveis com a direção artística de um teatro nacional. Digo que não a esses convites porque acredito que agora sou mais feliz, e mais relevante, dizendo sim reiteradamente ao Teatro Nacional. Uma coisa que me seduz aqui é que quando eu acho que já percebi qual é o caminho, há um diálogo constante com a equipa, os artistas, os espectadores, que me revela que não, o caminho pode ser ainda outra coisa, não oposta mas uma estrada mais larga ou luminosa…
Há uma visão antiga e conservadora dos teatros nacionais como ferramentas que servem, sobretudo, para mostrar grande teatro histórico do seu país. Já estamos muito distantes dessa ideia? Continua a sentir a responsabilidade de ter sempre na programação clássicos da nossa dramaturgia?
Em primeiro lugar: a má reputação que pode ter havido em tempos em relação ao Teatro D. Maria II é injusta. Sempre conheci este teatro, identificando-me mais ou menos com a sua programação, como um lugar de diversidade e abertura. Provavelmente, nós arriscámos mais do que era habitual na programação, mas também apostámos muito numa alteração da perceção de todos.
É fácil imaginar que há muita gente que passa por este teatro todos os dias e pensa: “Ah, não é para mim…” Por exemplo, a Dona Alzira que esteve aqui na apresentação da programação, em junho, mora na Rua Augusta há 50 anos e entrou pela primeira vez nesta casa nesse dia. Perguntei-lhe porquê e ela respondeu: “Porque é chique e eu não sou chique…” Gostamos de pensar, muitos de nós, que já não vivemos nesse país, mas ainda vivemos também nesse Portugal em que muitos portugueses se sentem afastados dos lugares solenes, de relevância. Ainda por cima, este teatro é, também, um monumento nacional, no Rossio, com um grande poder arquitetónico e social. Sabíamos que era muito importante mudar a perceção das pessoas sobre esta casa.
Há, portanto, uma grande mudança no modo de encarar um teatro nacional, este em particular…
Em 2018, um teatro nacional tem de ser um lugar de risco porque é um lugar de criação. E a única forma de o serviço público ser uma resistência à cegueira dos mercados e ao consumismo é continuar a investir dinheiro público no risco, na experimentação, no teatro de autor… Uma das grandes funções de um teatro nacional é, no fundo, permitir uma criação artística que seria impossível se o serviço público não a protegesse. Alguns espetáculos até poderiam acontecer na mesma, mas com um acesso muito mais difícil, de forma menos visível e mais precária. Não sei se há uma mudança assim tão grande. Talvez na perceção, lá está. Se me sentar à mesa com gente que fez teatro nesta casa, ou a dirigiu em anos anteriores, encontraremos muitos pontos em comum.
Sente essa obrigação de, em cada temporada, dar os grandes textos do teatro português?
A missão do Teatro Nacional fala em “tornar acessível a grande dramaturgia universal”. Isso está na lei orgânica que rege o TNDMII. E eu assino por baixo. O princípio fundador do Garrett, em 1846, neste teatro é, ainda, urgente hoje: tornar viva, em palco, a grande dramaturgia universal, promover e apoiar a escrita em português, ligar o teatro à educação. E um acrescento ao Garrett: apoiar o novo teatro, as novas linguagens. Estes são os quatro pontos essenciais, e nem sempre foram respeitados da mesma forma. Respondendo mais diretamente: acho importante apresentarmos nesta temporada o Frei Luís de Sousa, e voltar a ter Almeida Garrett no Teatro Nacional [encenação de Miguel Loureiro, de 1 de março a 7 de abril de 2019], como foi importante apresentarmos O Duelo, do Bernardo Santareno, que não era representado há décadas. Sinto essa necessidade, sim. Faz parte. A questão é que apresentar um Tchekhov, um Shakespeare, um Molière ou um Gorki não implica perpetuar uma convenção de como se devem fazer aqueles textos. Pelo contrário. Devemos perguntar: “Para que é que nos serve o Tchekhov hoje?” Devemos confrontar obras-primas da dramaturgia universal com uma linguagem de teatro que as resgate para o nosso tempo.
A encenação do Miguel Moreira para O Duelo foi um bom exemplo disso…
O Miguel Moreira transportou o imaginário e o manifesto artístico do Bernardo Santareno para o palco de um modo exemplar, sim. Como já o tinha feito o Miguel Loureiro com o O Impromptu de Versalhes ou o Tónan Quito com o Ricardo III. Por outro lado, é fundamental estar a criar o património futuro, arriscar em inéditos. Este ano, um bom exemplo é O Quarto Minguante, da Joana Bértholo, o primeiro texto que produzimos e montamos nascido no nosso laboratório de escrita para teatro.
Estão a apresentar, nas redes sociais, uma série de pequenos vídeos em que dão a voz aos vossos espectadores. É uma espécie de statement?
É uma forma de falarmos do nosso compromisso com o público: oferecer o melhor serviço público de teatro a quem já sabe que precisa dele e mostrar que ele existe a quem pensa que não precisa. Um dos projetos que me seduzem muito na temporada deste ano nem sequer é um espetáculo. Chama-se Primeira Vez e tem o objetivo de trazer ao Teatro Nacional, de cada vez, um grupo de 100 pessoas que nunca aqui entraram. Veem um espetáculo, fazem uma visita guiada, participam em conversas com equipas artísticas, regressam… Garantimos, assim, que centenas de pessoas vêm aqui pela primeira vez e assumem o compromisso de voltar mais duas ou três vezes. Depois, se quiserem, podem decidir nunca mais cá pôr os pés… Não podemos aceitar que há um público potencial que só não o é porque nunca dissemos às pessoas que podem vir aqui.
Respeitamos a escolha dos milhões de portugueses que durante um ano inteiro dizem “não vou ao Teatro Nacional”, mas suspeitamos de que muitos desses milhões não dizem “não vou” mas pensam que nem têm a hipótese, a escolha, de vir aqui. A nossa grande aposta é falar às pessoas que nem sequer se entendem como público. Não posso aceitar que o nosso público seja o público que o teatro português tem hoje. É como aquele verso do Zeca Afonso, “havemos de ser mais, eu bem sei”. Num teatro nacional isso não é possível. Uma parte do nosso trabalho é fazer com que qualquer português que passe aqui à porta pense na hipótese de entrar.
E por aqui até passam muitos estrangeiros…
Boa correção. Qualquer pessoa que passe aqui à porta. Isto de que estou a falar é particularmente difícil, e por isso ainda mais urgente. Se não podemos pensar que o Serviço Nacional de Saúde ou a educação pública são exclusivos, porque é que havemos de achar que o serviço público de cultura é só para aqueles que o entendem como necessário e já têm essa apetência e essa prática? Em termos de políticas culturais, a grande conquista que ainda está por fazer em Portugal, e que tem que ver com a educação e a descentralização, é essa: da democratização, do acesso. É preciso desmistificar essa noção de que os hábitos culturais não são um direito de todos. E a ideia de que a cultura, ou a arte, é uma coisa do feriado e só para alguns -devia ser dos dias úteis, para muitos.
Ainda há a ideia, numa boa parte da opinião pública, de que as salas de teatro estão vazias, mas já há alguns anos que não é bem assim…
Por alguns estudos feitos sobre públicos, sabemos que quem está a educar filhos é o público mais arisco – e este é um termo de que a minha avó iria orgulhar-se imenso. Esse é o público mais difícil, entre os 30 e os 45, por aí… Há uma espécie de salto geracional: um público muito jovem e, depois, um público daqueles que já têm os filhos na universidade. Mas há esse lugar-comum, sim: “Ah, o teatro, é pena é ter tão pouco público, não é?” Quando alguém me diz isso, eu pergunto sempre qual foi a última vez em que foi ao teatro e, regra geral, há muito tempo que não vai. Julgo que se projetam e pensam: “Como eu não vou, o meu lugar deve estar vazio.” É um preconceito errado. Tendencialmente, há mais público.

José Carlos Carvalho
Há números quanto a estes três anos em que tem dirigido o TNDMII?
De há um ano para cá, podemos falar de 100 mil espectadores por ano como um número-base. Quando aqui chegámos não era assim, faltavam umas dezenas de milhares para chegar aí… Tem havido um aumento gradual. Quando cheguei, em 2015, um dos debates que tínhamos muitas vezes alertava para a eventualidade natural de que, com a mudança e a renovação de projeto artístico, o TNDMII perdesse público durante alguns anos, como aconteceu, aliás, com grandes teatros europeus. Felizmente, não foi isso que aconteceu.
O risco de perder os habitués sem conquistar novos públicos…
Exatamente. Ou esses novos não serem suficientes para substituir os habitués que se perderam. Mas o público fiel e antigo do TNDMII não é conservador, vê teatro há mais de 40 anos! Ou seja: a sua faixa etária não é sinónimo de mais ou menos conservadorismo artístico.
Acredita mesmo no poder transformador do teatro nos dias de hoje?
Para um espetáculo que fiz, passei muito tempo na Torre do Tombo a pesquisar relatórios da censura. E um censor dizia que autorizava que passasse no cinema o Desejo Sob os Ulmeiros, do Eugene O’Neill, na versão com o Anthony Perkins e a Sophia Loren, porque era uma história feita lá longe, nos EUA, pertencia ao passado… Mas proibia a montagem da peça, com atores portugueses, porque isso seria dizer que estava tudo a acontecer agora, à frente dos nossos olhos, com pessoas reais. E, aí, seríamos todos cúmplices. Por isso, sim, acredito. E sei que eu, enquanto indivíduo e cidadão, fui transformado, às vezes em apenas duas horas, a ver um espetáculo. Não consta que tenha havido revoluções e golpes de Estado à saída de cinemas, mas de teatros já aconteceu várias vezes.
A história recente deste teatro resultou na situação híbrida de ter cinco atores nos quadros, como funcionários, sobreviventes de uma antiga companhia residente… Não é um pouco estranho?
É. O Teatro Nacional D. Maria II tem de voltar a ter companhia residente. Neste momento, essa é uma esperança muito concreta que faz parte daquilo que eu entendo que é a missão de um teatro nacional. Tem de ser, claro, uma ideia de corpo artístico sustentável e adaptada à possibilidade de alterações nos projetos artísticos ao longo do tempo. Há vários modelos na Europa nos quais podemos inspirar-nos. Acredito que é possível num curto prazo e estou a trabalhar para isso. É um processo em curso e, claro, há um debate público a fazer.