“A sua biografia ilustra bem o papel relevante que sempre desempenhou e desempenha – como advogado e homem de leis, como poeta e escritor, como jornalista e interveniente ativo na valorização da língua, da literatura, das artes e ideias”, escreveu-se na ata. O júri realçou ainda o papel desempenhado na fundação, direção e manutenção do Jornal de Letras – Artes e Ideias, uma” iniciativa única”, pela” permanência e regularidade” – e que projeta a cultura e a língua portuguesas no mundo, com uma qualidade digna de reconhecimento.
A vida e a obra de José Carlos de Vasconcelos, 77 anos, foram mais uma vez reconhecidas, desta vez com o Prémio Vasco Graça Moura Cidadania Cultural, entregue no auditório do Casino Estoril, pelo Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa. “Tinha preparado um texto, mas não resisto a umas notas prévias. Sinto que estou perante um ato de resistência cultural”, disse Marcelo, num tom sempre elogioso, a lembrar que até vizinhos foram. “Um militante da lusofonia”, classificou ainda o PR, que fez questão de terminar o discurso a assinalar a generosidade do também coordenador editorial da VISÃO.
“Parece-me significativo que a sua biografia denote que esteve sempre menos atento ao ego do que à cidadania: só quem é verdadeiramente excecional se permite ser assim humilde”. José Carlos Vasconcelos agradeceu a presença de todos – inclusive do Presidente, mas não o prémio: “Não agradeço, mas registo e não esqueço, em particular as generosas razões com que fundamentaram a decisão”. Na mesma cerimónia, foi ainda entregue o Prémio Fernando Namora ao escritor Afonso Cruz.
DISCURSO DE AGRADECIMENTO DE JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
“Agradeço, no que me cabe, a presença do sr. Presidente da República. Diz-se que o sr. Presidente está em toda a parte. É um manifesto exagero. Mas está, de facto, em muita parte. O que não é motivo para lhe agradecer menos estar aqui hoje. Ao invés, é razão para duplamente lhe agradecer: o estar aqui hoje e o estar em tanta parte, sem pose de Estado mas em serviço de Estado, com sentido de Estado, de forma empenhada, solidária e afetuosa. Digo-o não como comentador político, que não sei se fui mas Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto tal, apontou como o único mais antigo do que ele — digo-o apenas como cidadão.
Também agradeço, no que me cabe, as presenças de todos os que participam deste ato. Aos membros do júri que decidiu atribuir-me o Prémio Vasco Graça Moura, Cidadania Cultural, não agradeço, porque sabendo da sua seriedade e qualidade dos seus membros, em simultâneo sei que só o fizeram por, bem ou mal, em consciência entenderem dever fazê-lo. Não agradeço, mas registo e não esqueço, em particular as generosas razões com que fundamentaram a decisão.
A minha honra e satisfação por receber este prémio são redobradas por ele homenagear Vasco Graça Moura, tendo o seu nome, e por na edição anterior, a primeira, haver distinguido Eduardo Lourenço.
VGM foi – é – uma personalidade maior da nossa literatura e cultura, a um imenso talento juntando uma extraordinária capacidade de trabalho e de fazer. Senhor, de par com Jorge de Sena, da mais portentosa oficina de um escritor português contemporâneo, só a soma destas e outras qualidades tornou possível a vasta e notável obra que nos legou, em vários domínios, mormente como poeta, poeta na sua própria poesia e na que traduziu. Lembro também o outro, e mesmo, Vasco, desde que o conheci, no Porto, jovem poeta, “modo mudando”, e advogado; depois, elemento ativo da candidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República, a cuja comissão política nacional eu pertencia; mais tarde, muita, muitas outras coisas – até, por fim, presidente do CCB e a sua tão corajosa luta contra a morte. Não esqueço, por exemplo, não muito antes dela, estarmos juntos aqui mesmo, no Casino, na Grande Noite do Fado, com ele a apreciar ainda o espetáculo e a mandar mensagens à Aldina Duarte; e muito menos posso esquecer, como todos que aí estiveram, a derradeira homenagem a ser-lhe prestada em vida, o seu comovente doutoramento pela Universidade do Porto, as poucas e medidas palavras que conseguiu dizer e como tantas outras suas publiquei no JL, a que nunca faltou em colaboração e apoio.
Quanto a Eduardo Lourenço, todos sabemos ser o pensador e ensaísta que em nosso tempo de forma mais brilhante interpretou e perspetivou Portugal, o seu passado, presente e futuro, a ligação à Europa, etc., etc. Acresce que EL é um autêntico escritor, um escritor de ideias, um criador em cuja bela prosa tantas vezes esplendem o ritmo, a cor e as metáforas da boa ficção e poesia. Por desnecessário, mais não acrescento sobre a rara figura humana e o muito querido amigo com quem tenho o privilégio de um convívio constante – e que, estando entre nós, saúdo agradecidamente por tudo que nos deu e continua a dar, no esplendor dos seus 93 anos.
Uma palavra ainda sobre a Estoril Sol, que instituiu os prémios hoje entregues (no caso do VGM em parceria com a Babel), assim prosseguindo uma assinalável ação cultural, que vem de trás mas muito se ampliou sob a égide de Mário Assis Ferreira, um homem de cultura, de gosto e também da escrita, como se vê do volume em que reuniu os seus textos da Egoísta. Ação que neste Casino do Estoril tem numerosas manifestações, mas também as tem, e relevantes, através de apoios concedidos pelo Casino da Póvoa. Ação que sigo e de que tenho sido beneficiário, desde o início da década de 80, com as Semanas da Baía no Estoril e do Estoril na Baía, ‘montadas’, cá, pelo Nuno Lima de Carvalho, e, lá, pelo Jorge Amado. Semana que levou a Salvador, entre outros em que me incluí, Amália Rodrigues e Fernando Namora, este homenageado com o prémio que em 2017 distingue o Afonso Cruz, escritor na primeiríssima linha dos revelados já este século, e um dos excelentes cronistas do JL, com o qual tenho o prazer de partilhar este ato.
Passei boa parte da vida a falar dos outros. E, na área literária e artística, sobretudo a tentar contribuir para a valorização e divulgação dos criadores e suas obras. A tentar ajudar a “gostar”, eu que “gosto de gostar”. De mim em geral falo só na poesia. Que tem andado muito na clandestinidade. Por um lado, por um certo pudor e não necessidade de publicar os versos, contrapondo-se à necessidade de os escrever; por outro, pelo muito trabalho, mormente, e exatamente, no exercício de uma cidadania cultural que entendo indissociável da defesa de valores, entre os quais avultam os da liberdade e da justiça.
Hoje, porém, na contramão, é de mim que terei de falar. Porque se o ‘produto’ do meu trabalho não justificará a atribuição deste prémio, o ‘esforço’, ao longo de décadas, justificará que alguém tenha pensado atribuir-mo. Atendendo ao que o JL fez, faz e representa, é natural que tal atribuição se deva essencialmente a tê-lo eu criado, dirigindo-o e conseguindo mantê-lo há 37 anos consecutivos, sem falhas nem interrupções, fiel a si próprio e com alguma qualidade, mau grado a sempre crescente falta de meios; mantê-lo com muita luta e a duras penas, hoje maiores do que nunca. É natural. Mas a verdade é que antes do JL, ou de par com ele, muitas outras coisas fiz ou tentei fazer nestas áreas. Desde muito novo…
Aos 13 anos comecei a escrever num jornal, além de… jogar ping-pong (qualidade em que, ‘campeão’, pela primeira vez vim a Lisboa, a um campeonato nacional, no – imaginem – antigo Casino do Estoril, ou melhor: Grande Casino Internacional do Monte do Estoril). E aos 17 era vice-presidente do Desportivo da Póvoa (de Varzim), fundando uma secção cultural que incluiu biblioteca, promoveu exposições e outras iniciativas, criou um cine-clube. Chegando eu a “apresentar” filmes que nem sequer poderia ver, pois eram para maiores de 18 anos… Ao mesmo tempo dirigi duas “página literária”, uma n’O Comércio da Póvoa, “semanário republicano”, outra no jornal de Fão. Intervenção cultural, pois. Que com as eleições de Humberto Delgado, em 1958, passou, para mim, a ficar para sempre ligada aos combates pela liberdade.
Estudante em Coimbra, essa intervenção começou na direção do Cine-Clube. Mas depressa a participação na Associação Académica passou a ser dominante. Estive em todas as lutas estudantis da primeira metade da década de 60, fui desde da organização do 1º Convívio entre Academias a presidente da Assembleia Magna e membro do nunca legalizado Secretariado Nacional dos Estudantes Portugueses. Mas, ao mesmo tempo, fundei e presidi ao Círculo de Estudos Literários; chefiei a redação da semanal Via Latina, órgão da AAC e depois “órgão dos estudantes portugueses”, apreendida pela polícia quando fizemos toda a 1ª página com a notícia do Encontro Nacional de Estudantes e proibida ad aeternum pela Censura; pertencer ao TEUC, nele fazendo até de Cristo, no Breve Sumário de Gil Vicente, o mais difícil papel da minha vida, e ser da redação da Vértice, então uma importante revista cultural, que editou, sucessivamente, o Cuidar dos Vivos, do Fernando Assis Pacheco, o meu Corpo de Esperança, e a Praça da Canção, do Manuel Alegre, que foi uma bandeira e marcou uma época. Tudo intervenção cultural, cívica e democrática.
Depois, a convite de Mário Neves, Lisboa e a redação do Lisboa, o diário mais prestigiado, liberal e atento à cultura; e a advocacia, no exercício simultâneo, que esse tempo de ditadura aconselhava, das duas profissões que sempre quis ter. Também para intervir – pela palavra, com a palavra, a razão e o coração. A luta pela liberdade de imprensa, no Sindicato dos Jornalistas – onde presidi à respetiva comissão – e fora dele. A defesa, como advogado, de presos políticos, e de tantos escritores, artistas, estudantes acusados em processos às vezes verdadeiramente impensáveis. E as sessões de canto livre (com o José Afonso, o Adriano, outros), e sobretudo as só de poesia, em associações e coletividades populares, dizendo versos de Camões a Alegre, amiúde com o genial Carlos Paredes a “acompanhar-me”, como ele dizia com a sua incrível modéstia. Sessões De poema em riste, título do meu livro de poemas, apreendido pela Pide, tributário dessa formidável experiência. Cidadania cultural, com intervenção política.
Enfim, o 25 de Abril. Com tudo que nenhumas palavras dizem. Afastado das redações desde 1971, o convite para a direção de dois diários e de uma revista. Opção pelo Diário de Notícias, e, sem “saneamentos”, aquilo a que o João Abel Manta, num dos seus famosos cartoons, chamou “a barrela de 1974”. Os comentários e a passagem pela direção de informação da RTP, e na RTP o primeiro programa literário, em parceria com o Assis: “Escrever é lutar”. A Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, de que desde há 15 anos sou o único “sobrevivente”. E, de par com alguma assustadora, tanta, tanta coisa fantástica que o 25 de Abril propiciou.
Destaque para termos criado, um grupo de jornalistas, o nosso próprio jornal, O Jornal. Exemplo de um novo jornalismo, êxito que fez dele, a certa altura, o órgão de imprensa de maior audiência, base da dinâmica de um grupo que lançaria diversos outros títulos, teria iniciativas pioneiras de grande repercussão, faria uma editora (em que tive o gosto de publicar muitos grandes autores portugueses, de Cardoso Pires a Eugénio de Andrade, de Natália Correia a Augusto Abelaira – e ainda Garcia Márquez, Drummond – que há 30 anos não saía em Portugal –, João Ubaldo); e base, ainda, com uma cooperativa de profissionais de rádio, da criação da TSF, Rádio Jornal. Ou seja, o que, enquanto diretor editorial ou “líder” do grupo, sempre qualifiquei como, cito, um “projeto jornalístico, cívico e cultural”. As três coisas sempre, para mim, profundamente ligadas.
De então para cá muita coisa aconteceu e com muitas consequências. Por exemplo, O Jornal foi substituído pela Visão, de que também fui fundador, e hoje em perigo como o JL. De então para cá, a participação em várias instituições e inúmeras ações e iniciativas na área da cultura, em várias frentes. Também na defesa de causas que creio essenciais, de que destaco duas: a de uma sempre crescente aproximação e colaboração com o Brasil, pátria e povo irmãos; a da lusofonia, da comunidade dos países da língua portuguesa, língua que é a nossa maior riqueza e deve ser o mais profundo e perene laço a unir-nos. Recordo, aliás, que o JL organizou, com o embaixador do Brasil, meu sempre lembrado José Aparecido de Oliveira, a 1ª mesa-redonda luso-afro-brasileira, preparatória da criação da CPLP; e que fui o comissário do colóquio internacional Língua portuguesa e culturas lusófonas num universo globalizado, organizado pela União Latina.
Termino. Se o que fiz, pois, pelo resultado não justifica este prémio, pode explicá-lo pelo esforço. Muito trabalho, no concreto, no terreno, que me deu bastante experiência e ajudou a ter alguma “sabedoria”, também contribuiu bastante para a minha enciclopédica… ignorância.
Intervenção, cidadania cultural, inseparável da liberdade, da ética, da justiça como guia e farol. Mesmo a política, em sentido mais estrito, vejo-a nessa perspetiva: a política como ética e poética em ação.
Não sei quanto tempo ainda conseguirei “resistir”. Não sei o que irá acontecer com o JL nem como se traduzirão as muitas manifestações de apoio que temos recebido. Seja como for, este prémio, para mais nesta altura, constitui um reconhecimento que muito me toca, um raro reconforto e estímulo. Que recebo como sou, alguém sem ambição pessoal, que não busca o êxito nem pensa na “posteridade, não procura qualquer lugar em qualquer “galeria de retratos”, que vive o efémero como futuro – e como se o efémero fosse eterno. Ou como escrevi num poeminha que abre o meu livro Caçador de Pirilampos:
Dia a dia me consumo,
dia a dia me desgasto,
minha vida é fogo posto.
E o que nem fica de fumo,
o que nem fica de rasto
– esse é o meu rosto.