Também não me lembro do mundo sem música. Em casa, o meu pai ouvia um pouco de tudo: Beatles, Bob Marley, Ella Fitzgerald, Mozart, Rolling Stones, Keith Jarrett e tantos outros. No carro, a playlist era outra: GNR, Rui Veloso, Madredeus, Voz e Guitarra e Rio Grande. Ao lembrar-me destes discos pergunto-me se o meu pai deixava a música portuguesa para o carro de propósito. Isto porque sempre cantámos muito durante as viagens. Acho que era uma estratégia dos meus pais para eu e o meu irmão não nos matarmos no banco de trás.
Comecei a aprender guitarra aos 12 anos e passado pouco tempo fui a um estúdio gravar uns cinco ou seis originais, com o meu irmão a fazer harmonias. Ainda hoje, a minha avó diz que é o disco preferido dela. Já eu prefiro não o mostrar a ninguém.
Os dois fizemos o 12º ano nos Estados Unidos da América numa família de acolhimento, e os dois participámos no programa Ídolos, sendo que nenhum de nós considera o programa o início das nossas carreiras.
Mais tarde, o meu irmão foi para Espanha estudar Psicologia e eu para os EUA estudar música. Partilhava com ele tudo o que compunha e ficava muito feliz quando sentia que ele tinha orgulho em mim.
Um ano depois, o meu irmão tomou finalmente a decisão de largar a Psicologia e dedicar-se só à música. Na altura, a ideia era ficar a viver em Maiorca e tocar em bares.
Como irmã mais velha e mandona que sou, discuti com ele e tentei convencê-lo a fazer um curso de música. Não sei se fui eu quem o fez mudar de ideias, mas na verdade não importa. Pouco tempo depois estava em Barcelona, a estudar no Taller de Músics.
Eu, que sempre achei que o meu irmão não era feito para escolas, ficava todos os dias fascinada com a dedicação dele. Passava horas a estudar harmonia, treino auditivo e piano. Ia a jam sessions todos os dias e já todos os músicos de jazz sabiam quem ele era. Em poucos meses conhecia mais standards do que eu em três anos, e cantava-os com a segurança de alguém que cresceu com aquela música.
Entretanto, eu voltei para Portugal para gravar o meu primeiro disco e, passado um tempo, voltou ele por razões de saúde.
Não foram fáceis os primeiros meses porque uma coisa é querer vir embora como aconteceu comigo, outra é ser-se obrigado.
Esta fase foi complicada, mas mais uma vez bastou-lhe começar a tocar, conhecer músicos e ir a concertos para tudo mudar.
De um dia para o outro, estava feliz outra vez. Gravou o seu primeiro disco, o Excuse Me, e começou a tocar pelo País.
Quando o Nuno Galopim me ligou a convidar para compor uma canção para o Festival, pensei logo no meu irmão. Eu sabia o quão incrível ele era e queria que mais pessoas o soubessem.
Na altura, mesmo antes de ter uma canção composta, falei-lhe no assunto e ele ficou meio reticente. A verdade é que nem eu nem o meu irmão nos identificávamos com o rumo do Festival nos últimos anos, já para não falar no da Eurovisão.
Na altura, o meu filho tinha 6 meses e eu não tinha tempo para nada. O meu irmão ligava-me ansioso a perguntar se já tinha composto alguma coisa e eu sentia que os meus dias comiam as horas sem eu sequer as provar.
Três dias antes da entrega da canção, decidi que tinha de ser, que não podia adiar mais, a canção tinha de ser composta. Cometi então uma loucura: fiquei acordada depois das oito da noite, coisa que não acontecia há seis meses, e compus finalmente a Amar Pelos Dois. O engraçado é que, no dia seguinte, compus outra e enviei as duas ao meu irmão.
Ele e o Luís Figueiredo, pianista e arranjador, gostaram mais da primeira e decidimos então gravar essa.
Desde o início do processo que concordámos que a nossa canção não era “festivaleira” e que provavelmente não iria passar sequer da semifinal, mas a verdade é que isso nunca nos importou. Os três queríamos apenas levar uma canção bonita ao Festival, uma canção da qual nos orgulhássemos.
O Luís fez o belíssimo arranjo de cordas, convidámos o Quarteto Arabesco e gravámos a canção sem qualquer pretensão de chegar onde quer que fosse. Queríamos apenas que ficasse bonita.
O que aconteceu na semifinal fez-nos pensar que era possível ganhar o Festival da Canção e isso, apesar de espetacular, era também bastante assustador porque significava ir à Eurovisão.
Atenção que não digo que era assustador porque a competição é feroz ou algo assim. Era assustador porque aquilo não é o nosso mundo. Porque nada tem a ver com a maneira como nós vemos e vivemos a música.
Sem saber como, ganhámos o Festival da Canção. Confesso que a primeira coisa que fiz quando saí do Coliseu foi chorar. E não, não foi chorar de alegria. Chorei porque achei que o meu irmão não ia poder viajar e senti que tinha enganado toda a gente que votou em nós.
No dia seguinte, os médicos reuniram-se e disseram-nos que iam fazer tudo para ele conseguir ir, mas que só poderia estar fora do País, no máximo, uma semana.
A Eurovisão autorizou que eu fizesse os primeiros ensaios pelo meu irmão e lá fui eu, com o meu filho, para Kiev.
Assim que acabou o primeiro ensaio, recebi logo muitos elogios por parte das pessoas que estão por detrás do espetáculo: técnicos de som, realizadores, etc. Fez-me pensar que afinal nem toda a gente que ali está é fã de fogo de artifício.
Depois de alguns dias de muitas entrevistas e ensaios, fui-me apercebendo que a nossa canção estava a ser muito falada e que era uma possível vencedora. Eu só pensava: “Se isto é assim comigo, imagino com o meu irmão.” Atenção que não me estou a diminuir. Quando escrevo uma canção para alguém, penso na voz dessa pessoa. Esta canção foi feita para a voz do meu irmão e é na voz dele que encaixa que nem uma luva.
Depois de responder muitas vezes à pergunta “mas o Salvador vem mesmo?”, o meu irmão chegou finalmente. Toda a gente queria uma entrevista com ele ou uma fotografia. Ele, que não tinha tido a preparação que eu tive na semana anterior, ficou um pouco assustado e sentiu-se completamente deslocado. Para ser sincera, acho que esse sentimento se manteve até ao final.
Chegou o dia da semifinal e passámos. Não ficámos a saber em que lugar, mas passámos. Ficámos muito felizes. Portugal já não passava à final há uns anos. Pelo menos essa alegria já tínhamos conseguido dar.
O dia da final foi bastante tranquilo e o cenário era o mesmo do costume: bailarinos de um lado para o outro, macacos, homens com cabeça de cavalo, e pessoas a aquecer a voz em grupo. Um dia normal na Eurovisão.
Depois de todas as atuações, chega aquela altura em que, apesar de dizermos “é indiferente em que lugar ficamos, já foi tão bom termos estado aqui todos juntos”, estamos todos desejosos de ganhar.
Como podem ver nas imagens, tanto eu como o meu irmão somos péssimos a matemática e demorámos um bom bocado a perceber que somos os vencedores. Portugal vence finalmente a Eurovisão!
Mais do que vencer a Eurovisão foi vencer a Eurovisão com uma canção assim.
Já que escrevi a Amar Pelos Dois, acho que posso também falar pelos dois e dizer que o que nos deixou mais felizes foi sentir que tínhamos representado a música que se faz no nosso país. Sentimos isso também nas inúmeras mensagens que recebemos de todos os nossos amigos músicos, a dizer que estavam orgulhosos de nós. Isso sim foi uma vitória!
Tudo isto culmina com uma chegada ao aeroporto que só tinha visto com equipas de futebol. Os seguranças avisaram-nos, mas eu não ia preparada para aquilo que encontrei. Um mar de gente.
Mais uma vez, as lágrimas caíram-me pela cara abaixo como naquele dia em que saí do Coliseu. Mas desta vez, sim, de felicidade.
(Artigo publicado na VISÃO 1263, de 18 de maio de 2017)