Wim Wenders é um homem marcado por lugares. Nasceu em Düsseldorf, Alemanha, há 71 anos, no fim da Segunda Guerra, e contribuiu para dar uma imagem cinematográfica ao seu país em filmes como Alice nas Cidades e, sobretudo, a obra prima As Asas do Desejo, centrada em Berlim. Com Paris, Texas (de 1984) descobriu os Estados Unidos da América, lugar que nunca deixou de o encantar.
Portugal também faz parte da sua geografia afetiva: aqui filmou O Estado das Coisas (de 1982) e Viagem a Lisboa (do ano em que a cidade foi Capital Europeia da Cultura, 1994). Nesta entrevista fala da sua relação com Portugal e explica que cinema e fotografia são, no seu trabalho, dois países distantes.
Quais são as suas memórias visuais mais fortes de Portugal durante a rodagem de O Estado das Coisas?
Fiquei com várias impressões fortes dessa viagem a Portugal em 1980. Por um lado, Sintra, onde filmámos várias cenas e nos instalámos durante a rodagem. Lembro-me que gostei especialmente de uma villa mourisca mais ou menos abandonada que lá encontrámos… E havia a vasta Praia Grande com aquele hotel abandonado, deitado ali como uma baleia encalhada. Na verdade, encontrar esse hotel foi o que desencadeou todo o filme. Por último, mas não menos importante, O Estado das Coisas também significa o meu primeiro encontro com a cidade de Lisboa, que me deixou verdadeiramente hipnotizado. Adorei os elétricos (onde filmámos), amei o bairro de Alfama, que na altura ainda era bastante duro, mas o meu lugar favorito era o Texas Bar, por baixo daquela ponte na rua [junto ao Cais do Sodré]. Claro que acabámos por filmar uma longa cena lá…
E mais de uma década depois, quando veio filmar Lisbon Story?
Aí foi tudo muito diferente. Na verdade, nessa altura eu morei mesmo em Lisboa, passei aí vários meses. Tínhamos um belo apartamento em Alfama com vista para a Sé e para o Tejo. Esse filme foi, realmente, uma descoberta da cidade, através da sua paisagem sonora muito particular. Lisboa desempenhava o papel principal. E os nossos “guias turísticos” eram, nada mais, nada menos, do que os Madredeus, que escreveram uma série de canções sobre a cidade para a banda sonora. No final, senti que não só tínhamos arranhado a superfície da cidade, como também descoberto a sua alma – uma pequena parte dela, pelo menos…
Que palavras relaciona imediatamente com Lisboa? E o que gosta mais, e menos, na cidade?
Saudade. Gosto da maneira como Lisboa se relaciona com o mar. Temos a sensação de que a cidade olha na direção do oceano, em vez de se voltar e olhar mais para a Europa. Ainda hoje, acho que os portugueses sentem o desejo da distância, de lugares remotos, mais do que a atração pelas fronteiras europeias. O que eu gosto menos? A maneira como os edifícios modernos invadem a cidade e parecem retirar-lhe muito do seu charme.
Sente que tem uma personalidade artística diferente como cineasta e como fotógrafo?
Definitivamente! Como cineasta, eu sou um contador de histórias. Vou a um lugar e levo comigo os meus personagens e a minha história, e passo a tentar contá-la de maneira a que se encaixe naquele sítio o melhor possível. Como fotógrafo, chego desprovido de qualquer história e qualquer intenção. Pelo contrário, tento ser o mais vazio possível e “desaparecer” na cidade, ou na paisagem, tanto quanto me é possível. Quero que o lugar me conte a sua história, e não vice-versa. E os lugares são grandes contadores de histórias! Conhecem muito bem os humanos e têm uma grande memória. São essas histórias sobre nós que eu tento decifrar com a minha máquina fotográfica.
Leva o seu trabalho como fotógrafo muito a sério? Ou é mais uma coisa impulsiva, uma espécie de hobby?
Ao longo dos últimos 30 anos, tornou-se a minha “outra profissão”. Levo-a a sério, sim, e tento manter o meu cinema e a minha fotografia muito distantes. Quando viajo para fazer um filme, tento concentrar-me em ser o tal contador de histórias e muitas vezes nem sequer levo as minhas máquinas fotográficas comigo. E quando viajo para tirar fotografias não posso ter a ideia de um filme a ocupar-me a mente. São estados de espírito muito diferentes, e já não consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Nas últimas décadas a fotografia passou por enormes mudanças tecnológicas. Acompanhou-as sempre, converteu-se à fotografia digital e à facilidade de podermos tirar fotografias com telefones?
Como cineasta, fiz há muito tempo a transição para as tecnologias digitais. Ao longo dos últimos anos, a maioria dos meus filmes têm sido feitos em 3D… Não tenho tendência para a nostalgia e não estou arrependido de ter desistido da película tanto para documentários como para filmes de ficção. Na verdade, sou um gadget freak há já bastante tempo e sempre tentei dar uso a novas tecnologias assim que elas se tornavam disponíveis, para descobrir como eles podiam ampliar as minhas possibilidades como contador de histórias. Como fotógrafo, no entanto, estou extremamente relutante em renunciar ao negativo, à película, e a todas as ideias que lhe associamos. Na verdade, não posso fazer o meu trabalho como “fotógrafo que escuta” ou como testemunha das histórias que os lugares contam com a tecnologia digital. Como fotógrafo, viajo sempre sozinho, por minha conta e risco, nem sequer tenho um assistente. É um trabalho que, para mim, só funciona em completa solidão. E não consigo usar máquinas digitais. Já tentei fazê-lo e acabei sempre por devolvê-las no final. O simples facto de elas nos mostrarem a imagem na parte de trás estraga todo o ato para mim. Não posso mesmo ver o “produto” final quando estou no processo de tentar entrar na história de um lugar. Ver uma imagem que capturei arruína tudo… Preciso de manter esse mistério em curso, entre aquele lugar e eu. Só quero ver o resultado do que fiz depois, nas minhas provas de contacto. Às vezes, isso só acontece semanas mais tarde, e isso não é um problema. Claro que tiro muitas fotos com o meu iPhone, todos os dias. Mas, para mim, isso não é “fotografia”. É como tirar notas… Essas imagens podem ser úteis e boas ferramentas de comunicação mas, na minha opinião, não são “fotografias”.