Sentada numa poltrona imperial no meio do palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, Elza Soares é a diva que grande parte do público do segundo e último dia do festival Vodafone Mexefest quer ouvir. A cabeleira e os lábios roxos sublinham o carisma desta sobrevivente. O vestido preto prolonga-se através de uma espécie de raízes que cobrem o palco, a lembrar que esta é uma mulher com quase oito décadas de vida bem enraizadas na história da música brasileira. É a própria quem anuncia: “Eu quero cantar até ao fim. Me deixe cantar até ao fim”.
Apesar de passar todo o espetáculo sentada na sua poltrona, Elza Soares consegue fazer chegar a sua energia à plateia. Sobra-lhe em força de espírito o que lhe falta de força nas pernas. “Boa noite minha gente muito fixe. Eu quero ouvir barulho pra xuxu!”, ordena à chegada com a sua voz rouca. E o público fez-lhe a vontade.
São as lutas da sua vida que dão corpo a esta banda sonora. Nascida na favela de Moça Bonita, no Rio de Janeiro, filha de uma lavadeira e de um operário e músico amador, foi obrigada a casar pelo pai quando tinha 12 anos. Aos 13 já era mãe. Quando cantou na Rádio Tupi, aos 16 anos, causou estranheza pela sua magreza e fragilidade. Perguntaram-lhe de que planeta vinha e a menina Elza respondeu: “Do planeta da fome”.
Dos sete filhos que teve, perdeu quatro em circunstâncias trágicas. Também ficou devastada com a morte de um dos seus ex-maridos, o mítico Garrincha, com quem esteve casada quinze anos. Elza teve que lidar com o alcoolismo do futebolista e foi vítima de episódios de violência doméstica.
O apelo mais forte que a artista fez no Coliseu dos Recreios dirigiu-se a todas as mulheres portuguesas: “Chega de sofrer calada. Tem que gritar. Gemer só de prazer. Denuncie!”, exortou antes de cantar Maria da Vila Matilde, um hino contra a violência doméstica – o momento de maior delírio entre a plateia.
Elza Soares veio a Portugal apresentar o disco A Mulher do Fim do Mundo, o primeiro em mais de meio século de carreira apenas composto por inéditos, vencedor do Grammy Latino para Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. No estúdio, como em palco, a artista fez-se acompanhar de um conjunto de músicos de São Paulo absolutamente exímios. O grupo é liderado por um carioca, Guilherme Kastrup, também produtor do álbum.
A sonoridade de Elza Soares não ficou cristalizada no tempo. Percussão, teclados, bateria, guitarras elétricas, tudo isso compõe um rock mestiço que obriga o corpo a gingar ao som deste samba musculado.
Diva de voz rouca
Na década de 70, começou a atuar na Europa e nos EUA mas, nos anos 80, esteve prestes a desistir da carreira. Foi Caetano Veloso quem a convenceu a continuar.
Os direitos das mulheres e a libertação sexual – “Unhas cravadas em transe latejo / roupas jogadas no chão / pernas abertas, te prendo num beijo / sufoco a sofreguidão”, canta em Pra Fuder – são alguns dos temas da música de Elza. Também os direitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros) e a luta contra a discriminação racial são suas bandeiras. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, dispara na canção A Carne.
O espetáculo contou com a participação do cantor e bailarino Rubi em Benedita, a que se seguiu um dos momentos mais tranquilos com Malandro.
Antes ainda de, no encore, oferecer ao público Volta por Cima e Pressentimento, houve luzes que desceram sobre o palco, evocando uma espécie do tal “fim do mundo”, e ouviu-se Comigo: “Levo minha mãe comigo/ de um modo que não sei dizer/ levo minha mãe comigo/ pois deu-me seu próprio ser”.
Ensaiando o seu sotaque português, a cantora encontrou o epíteto certo para os portugueses: “gente altamente fixe”. E, se Elza ensina que, quando a vida corre mal, só há uma coisa a fazer… “Levanta, sacode a poeira / E dá a volta por cima!”, foi com o mesmo otimismo que se despediu do Vodafone Mexefest. “Isto é só o começo. Ainda vem muita coisa boa pela frente”.
O concerto de Elza Soares no Coliseu dos Recreios foi um raro momento histórico de consagração de uma diva que, em quase 80 anos de vida, conseguiu conquistar a intemporalidade e impôr uma voz rouca, nem sempre muito melódica, que é um misto de dor e determinação.
Esta edição do Vodafone Mexefest mostrou que o festival, e os seus espectadores, estão cada vez mais ambientados à Avenida da Liberdade e aos vários espaços de concertos. Às vezes, são os artistas que parecem não estar absolutamente pacificados com a dinâmica do público que entra e sai à medida do calendário musical de cada um.
Os concertos surpresa no Largo de São Domingos, com Jorge Palma na sexta-feira e António Zambujo no sábado, foram uma aposta ganha pela abertura a novos públicos. Dentro de portas, destaca-se a estreia do remodelado Cine-Teatro Capitólio, no Parque Mayer.
Os fãs de hip-hop e R’n’B assistiram a grandes concertos de Talib Kweli ou Gallant. Enquanto os adeptos do rock independente tiveram Jagwar Ma ou Kevin Morby. O encerramento coube a Branko (ex-Buraka Som Sistema). Foi bonita a festa. E nem a chuva a estragou.