Sentei-me de óculos Gear VR postos, reclinei-me e olhei para a plateia. Faltavam menos de quatro minutos, mas magotes de gente continuavam a chegar e a instalar-se, nas calmas. Portugueses…
Voltei a olhar para o palco ao som dos primeiros acordes. Sónia Tavares começou um espetáculo que se queria clássico, no Meo Arena, com uma nova música, Clássico. A artista não está à minha frente: está ao meu lado. Os 20 anos de carreira dos The Gift marcam a primeira vez que um concerto português é transmitido com tecnologia de realidade virtual: foram instaladas junto ao palco duas câmaras capazes de filmar a 360º e exibir em streaming ao alcance de quem tivesse o equipamento certo (os tais óculos Gear VR com smartphones Samsung Galaxy S6 ou S6 Edge).
Tiremos do caminho os problemas: a imagem não tem uma definição extraordinária e há um minúsculo mas incomodativo delay entre o vídeo e o som. Mas, ao contrário do que acontece na vida real, na vida virtual o tempo suaviza as imperfeições – é uma experiência demasiado imersiva para atentarmos em minudências, sem momentos mortos, em que nos sentimos – estamos efetivamente – a controlar a objetiva, como que dentro da pele do mais egoísta dos realizadores, que filma para si mesmo. Uma experiência quase impossível de descrever com palavras.
Vou saltando de câmara para câmara. A certa altura, estou entre Sónia e os três companheiros. Um no teclado, outro no baixo, outro na guitarra, eu e a Sónia. Os cinco. Fico com vontade de pegar numa guitarra e acompanhar os acordes. Então, entre duas músicas, a vocalista decide falar com o público para recordar o início da banda, há 20 anos, quando começaram a tocar num qualquer sótão de Alcobaça. E de repente, quando a oiço falar das suas origens, ali ao meu lado, a minha memória recua esses mesmos 20 anos. Por momentos, abandono o Meo Arena.
Por volta da mesma altura em que os The Gift se juntaram pela primeira vez, eu, o Hugo, o Garvalho e o Macedo encontrávamo-nos em frente a um pires de caracóis numa tasca em Alverca. Ao fim de umas quantas imperiais, a conversa passou para a música. E se formássemos uma banda?, sugeriu um, entre largos golos de cerveja. Boa ideia, brindámos. O Hugo sabia tocar guitarra – portanto, obviamente, seria ele o vocalista. E o baterista é sempre o gordo, e por sorte um de nós era anafado – ao Garvalho, bastava comprar uma bateria em segunda mão e depois bater naquilo até aprender a tocar. E só pela piada o baixo ficaria nas mãos do mais alto, que por acaso até conhecia um rapaz que estava a vender um – era para destros, e o Macedo era canhoto, mas isso não interessava nada. E, finalmente, eu, que nunca tinha pegado numa guitarra, seria o guitarrista, porque os meus pais tinham um sótão onde podíamos ensaiar. A propósito, como é que se diz sótão em inglês? Attic? Então já temos nome. Vamos ser os The Attic.
Assim se criava uma banda nos anos 90.
Os The Gift não eram muito diferentes. Basta trocar um sótão em Alverca por um em Alcobaça, e quatro estarolas por quatro pessoas que sabiam a diferença entre um fá e um si, e a história é exatamente a mesma.
Regresso ao palco. Volto a pensar numa forma de pôr em palavras a experiência de assistir a um concerto com óculos de realidade virtual. E é aí que me apercebo: eu conhecia o percurso dos The Gift. Já tinha visto vídeos de atuações da banda ao vivo. Sabia das claras semelhanças (e das ainda mais claras diferenças) com a minha banda. Mas até hoje, até me ver ao lado deles, no meio deles, como que um deles, nunca tinha pensado nisso.