Por ocasião dos seus 80 anos, num artigo publicado na VISÃO, revista da qual foi um dos fundadores, Germano Silva confessava: «Não sei tudo sobre o Porto, nem pensar. É fascinante saber que ainda há muita coisa envolvida em mistério», garante. Se nessa altura já andava a magicar em novas histórias, o jornalista e escritor não abriu o livro. Mas, nem de propósito, a edição que novamente leva o seu nome é resultado de um meticuloso esgravatar da cidade que mora longe do primeiro olhar, esquecida ou desconhecida. “Há anos comecei a pensar em como seria interessante descobrir outras histórias de um Porto que se esconde nas traseiras dos edifícios, invisível, por isso, a quem passa apressado pelas ruas ou sobe as suas escadinhas”, esclarece o autor na contracapa de Porto Desconhecido & Insólito (Porto Editora). Daí a meter mãos à obra foi um instantinho. “Julguei que sabia muito do Porto, das pessoas que nele habitam, das suas ruas e ruelas, esconsas e estreitas, e dos sorrisos atrás das janelas”, admite Germano Silva. “Mas um dia comecei a olhar também para os jardins escondidos nas traseiras das casas e para o interior de certas habitações e a prestar mais atenção a certas imagens das nossas igrejas e capelas. E não imaginam as histórias e outras curiosidades que acabei por descobrir…”, reconhece Germano, cuja nova obra será lançada este sábado, 7, pelas 15.30, na Casa do Cais Novo, obviamente na cidade Invicta, com apresentação do jornalista David Pontes e a presença já obrigatória do Rancho Folclórico do Porto.
Episódios e personagens
Um imperador caloteiro, um amor de fazer perder a cabeça, uma igreja envergonhada, um padroeiro dos escravos são algumas das personagens e episódios que o autor desvenda neste novo livro. “Germano Silva é pedra granítica, azulejo biselado de fachada e ferro forjado de uma varanda portuense”, escreve, no prefácio, Jorge Ricardo Pinto, geógrafo e também ele, em certa medida, “historiador” da cidade. Para alguns dos seus devotos, o jornalista e escritor é “mestre dos cantos e recantos” do Porto, autor “da história mais pura, da gente anónima, das ruas, dos passeios, dos percursos”. O ex-autarca do Porto, Rui Rio, que lhe atribuiu a Medalha da Cidade em 2005, realçou em tempos a sua faceta de “pedagogo da sua memória no presente”. Pinto da Costa, presidente do FC Porto, habituado ao “jeito simples, conversador” de Germano, reconheceu nele, há uns anos, o caráter que típico «de quem gosta de partilhar o conhecimento, o que também é um traço das pessoas da nossa cidade”. De facto, só o Germano, cronista das histórias e memórias da Invicta, divulgador militante dos seus segredos e enigmas, tem este raro dom de aproximar figuras e personalidades à volta das grandezas e miudezas do burgo, mas fazendo-o “sem se impor a ninguém, tal como o pintor António Cruz faz nas aguarelas”, como já reconheceu o médico e cientista Sobrinho Simões.
Germano, passado e futuro
A tarimba de Germano foi feita em publicações de referência do País (Flama, Século Ilustrado e O Jornal, por exemplo), sempre a catar as “estórias” de uma cidade inesgotável “e de uma forma que não é chata, nem museológica, nem folclórica”, segundo Sobrinho Simões.
Um dia disseram-lhe: para seres um bom repórter da cidade, tens de conhecê-la e calcorreá-la.
Era o tempo em que o rapaz nascido em Recezinhos, Penafiel, no ano de 1931, batucava prosa ao ritmo insípido do “aconteceu ontem”, alinhavando acidentes e incêndios, sem entusiasmos por aí além. António Brochado, chefe de redação do Jornal de Notícias de outro lustro, abanou então o jovem jornalista. “Se aconteceu na Rua da Firmeza, talvez valha a pena saber porque é que a rua se chama Firmeza”, dizia, de mãos nos suspensórios, desafiador do instinto do repórter. “A Internet da altura era o anuário. Comecei a interessar-me pelo nome das ruas. Depois, vieram as pessoas e a literatura sobre o Porto…”. A cidade que ele vestia era do seu tamanho: humilde, trabalhadora, carregada de caráter, enfrentando de rosto levantado os dias desgraçados daquela época.
Ele, filho de um guarda-freio dos elétricos, fora marçano, tecelão, carpinteiro, trolha, eletricista, ajudante de motorista, enfim, operário “faz tudo”, de macacão e ganga coçada. Andara na fila para o pão e habitara os lugares onde as costuras do Porto se cosiam sem remendos de entreajuda. “Vivi numa ilha, tenho muito orgulho nisso. Foi a minha universidade e o local onde encontrei o melhor sentido de partilha, de comunidade”, assume. “Andam sempre ao barulho uns com os outros, mas, quando é preciso, esquecem-se as desavenças. Uma ilha não é necessariamente um estendal de miséria”, atesta Germano.
Da ilha fez-se o homem.
E do contacto com os repórteres do JN a quem passava as melhores informações caídas no serviço de urgências do Hospital de Santo António, onde trabalhava, às colaborações desportivas, tornou-se devedor, sempre grato, de um jornalismo que ainda praticou “a escrever à mão, com tinta de aparo”. Nestas e noutras recordações, Germano Silva “representa uma parte da memória do Porto”, essa faceta de quem é a própria história e se tornou, também, “recoletor de pequenas e grandes histórias” que ajudam a preservar essa “matéria impalpável que constrói a identidade de uma cidade”, recordou, por ocasião dos 80 anos de Germano, o escritor e letrista Carlos Tê, autor de Porto Sentido.
E que identidade é essa, Germano? “Não gosto da palavra bairrismo. Mas o Porto é feito de pessoas que dão a cara, que estão dispostas a lutar pelo que consideram justo”. Diferenças que uns 300 quilómetros não esbatem, mesmo num País do tamanho de uma palmilha. “Gosto de Lisboa, tenho lá amigos e os meus livros até se vendem bem na capital. Mas Lisboa sempre viveu do ouro do Brasil, da corte, é mais superficial. O Porto emprestou dinheiro aos reis para ele fazerem as guerras e batia o pé aos bispos num tempo em que isso era garantia de excomunhão”. Mas isso “não brita osso”, diziam os portuenses de então.
Todos os dias Germano tem a cidade a seus pés. Literalmente.
Não falamos sequer dos passeios regulares, em que ele, guia de grupos, excursões e amigos, mostra a cidade como quem revela as linhas da palma da mão. Faz quilómetros, qual andarilho nos seus afazeres e prazeres. Os alfarrabistas da cidade ligam-lhe, falam de uma novidade que guardaram para ele, antes mesmo de a colocarem nas estantes. Ele passa por lá, frequenta pequenas tertúlias de sábado na livraria de Nuno Canavez, ouve dali, consulta acolá, investiga acoli. O seu espólio será dos maiores da cidade e uma pequena parte dele já repousa no Arquivo Municipal. “Uma das coisas que guardo é a coleção toda da Crónica Constitucional, publicada durante o Cerco do Porto”, orgulha-se. Das suas tribunas na Visão e no JN devolve semanalmente à cidade as memórias que ela perdeu pelo caminho. E como continua a ter futuro, não conta a passagem do tempo. “Ó camarada, eu já deixei de fazer anos há muito tempo…».
Nota: este texto recupera parte de um artigo publicado na Visão por ocasião do 80º aniversário de Germano Silva.