Vivem na mesma cidade, o Porto – ou quase, vá, Reininho mudou-se há anos para Leça da Palmeira (Matosinhos) – mas em mundos diferentes. Nem de propósito, o diálogo começou com ambos a relembrarem a única vez em que estiveram juntos e ao vivo, na última Feira do Livro do Porto. “Ah… pois foi, estivemos a dar autógrafos no mesmo stand!” Apesar da diferença de idades entre Rui Reininho, 60 anos e Ana Fernandes, aliás Capicua, 32, ficou provado que é muito mais o que os une do que aquilo que os separa. Num dos camarins da Casa da Música, com vista para a Rotunda da Boavista, a conversa andou à volta da palavra e da forma como cada um a usa para chegar onde quer. O melhor é mesmo ler a conversa, importante ou ambígua mas, efetivamente, sem moralizar.
É muito complicado terem voz ativa na vossa agenda?
C: Eu tenho que defender a minha editora. Nestas semanas em que tenho muitos concertos, passar o tempo a responder a emails é impossível… E a editora aí é muito útil. Mas é difícil saber qual é o nosso tempo e o do trabalho.
E os GNR têm tido muitos concertos?
RR: Este ano sim. Dos últimos cinco ou seis anos, este tem sido o melhor.
Tem a ver com o lançamento de um novo álbum, o Caixa Negra?
RR: Por um lado sim. Como dizia o grande pensador Jaime Pacheco, isto é uma faca de dois legumes. Por um lado há aquela desculpa do “ah, vocês têm que fazer um disco novo para dar concertos”, mas quem contrata quase exige que toquemos as coisas de há 20 anos. Estupidamente, ou não, o público é que exige os temas clássicos. Não pode ser uma coisa onanista, temos de pensar no prazer do próximo…
Com a Ana isso também acontece?
C: Não tenho ainda uma carreira tão grande e não é fácil decorarem as minhas letras… Mas gostava de um dia ter toda a gente a cantar uma música minha à volta da fogueira. Os GNR têm músicas que fazem parte do nosso imaginário. O Dunas é aquela música que toda a gente sabe tocar na viola.
RR: Eu não… A sério, descobri este fim de semana! Mas o Dunas é um momento de descontração. É do público.
E o Rui aproveita-o para trocar a letra toda…
C: Gunas…
RR: Gunas, gomas, unhas, “alheiras e tudo…” – então se estamos em Trás-os-Montes e me cheira a fumeiro. Isso é o que me encanta, que os espetáculos sejam sempre diferentes. Isto não é funcionalismo público. Aliás, fica aqui a minha homenagem a esta moça por ter posto as cabeças a funcionar outra vez, fora daqueles refrões massacrantes.
O Rui ouve muito a Capicua?
RR: Sim, sim. E [virado para Capicua] ainda antes de tu apareceres tinha orgulho em conseguir distinguir o hip hop de Gaia do de Matosinhos, por exemplo.
C: E há um disco de rap à volta dos GNR…
RR: Sim, o Revistados. Para mim é um dos discos mais simpáticos que eles dizem de homenagem aos nossos 25 anos…
C: Uso o instrumental do Guardiões do Subsolo [tema dos GNR, do álbum Popless] nesse disco para cantar uma das minhas músicas. O hip hop é um bocadinho assim, como o fermento do padeiro, guardar um pouco da massa de ontem para fazer o pão de amanhã.
Trabalham os dois com a palavra, mas o Rui brinca com os sons, faz trocadilhos e a Ana usa as palavras mais como forma de intervenção social, na tradição do hip hop…
C: As questões sociais e políticas marcam o meu trabalho, sim. Não só pela tradição do hip hop, há músicos que usam o rap como forma de intervenção…
RR: … e há outros que são mesmo uns vendidos. O pessoal das joias, dos Ferraris, das gajas.
C: O rap nasceu para unir os bairros de Nova Iorque, onde havia muita tensão entre gangues. Depois, sim, foi utilizado como forma de intervenção. Gosto do impacto e da liberdade que tenho para falar de qualquer tema de uma forma direta. Os rappers não querem ser música de fundo, querem que as pessoas prestem atenção e há sempre uma mensagem associada.
É mais importante a mensagem?
C: O protagonismo é da palavra. No hip hop a base musical tende por isso a ser mais minimalista. No meu caso, a palavra serve para cumprir essa tal agenda política e de preocupações sociais que tenho. Mas também me apetece falar de outras coisas que não têm necessariamente de mudar o mundo… Só o próprio facto de ser uma mulher e ir para cima de um palco dizer o que me apetece já é um bocado subversivo. No meu caso, o rap dá-me essa possibilidade de chegar às pessoas para dizer aquilo que eu quero naquele momento.
O Rui também tem uma agenda de temas? ?E o processo criativo tem um padrão?
RR: Intuitivamente, sei mais ou menos por onde não quero ir. Por onde vou e se vai resultar, não sei tão bem. E penso muito em termos dos espetáculos.
Ainda nessa fase da criação?
RR: Sem falsas modéstias, seria burro se chegasse a esta provecta idade e não conhecesse as minhas limitações… Mas às vezes gosto de estragar um pouco aquela comodidade e foi isso que nos fez afastar das editoras, por haver um certo marasmo dentro do meio. As sugestões eram sempre um bocado redundantes e se ao menos tivessem pontaria, se fosse para nos oferecerem os tais helicópteros… [risos]. Mas eles próprios não têm uma receita e nós conquistámos uma certa liberdade, sempre nos deixaram fazer mais ou menos o que queríamos.
Foi difícil alcançar essa liberdade?
RR: Vi mais gente a falhar do que a conseguir. No nosso exército, foram mais os caídos do que os que chegaram à meta…
C: Em que sentido? Não conseguiram uma carreira longeva?
RR: Ou mesmo terem consequência e prazer. Constatei a frustração de grandes músicos que tinham uma atitude um pouco superior em relação a nós. “Ah.. estes gajos não trabalham”, “não tocam nada”, “aquele gajo não canta”. Não somos virtuosos mas há uma invejazinha… É o desporto nacional.
C: Será que é só nacional?
RR: É mundial, claro, e até mais impiedoso. Os músicos que conheci fora deste perímetro se calhar já eram pessoas muito descontraídas. Não se espera que o Nick Cave tenha um bom caráter, mas andei com ele aí na night e é descontraidíssimo. O Iggy Pop, que parece um tipo agressivo, é das pessoas mais simpáticas, fala muito baixo, quase a levantar-se para as pessoas se sentarem… Fui com ele ali ao Meia Cave [bar na Ribeira]. “Ah… não há champanhe”, disse o empregado. “OK, no problem”, disse ele. Até sugeri “tragam-lhe um Magos…” [risos]. E ele acabou por beber uma Super Bock, na boa. Os verdadeiramente bons têm um lado simpático, não estão a competir com nada. Agora também há gente que se mete nisto por dinheiro, por exemplo. Conheço músicos que andam nestes salões, recebem prémios, subsídios e falam do rock com desdém. “Toco em bandas de rock porque dá massa, o que eu gosto é de jazz ou de clássica…” Aquilo indignava-me, mal ou bem isto é a minha arte.
C: Isso no hip hop seria um fake… [risos].
Qual é a vossa relação com os festivais ?enquanto músicos e espetadores?
RR: Ainda bem que me faz essa pergunta… É porque estou indeciso em ir aqui ao Paredes de Coura, mas hoje li que estava esgotado e pensei “eh pá, já não me apetece ir…”. Não é por ser comercial, é por não ser prático, ter de deixar o carro longe e depois, apesar do pessoal ser muito simpático,?há uma coisa que me chateia que são as selfies. Não consigo dar dois passos sem virem ter comigo para tirar uma selfie…
C: Eu tenho uma T’shirt a dizer “Não tiro selfies”.
RR: Vi uma vez uma que dizia “Go fuck yourselfie”. Disse logo que queria uma daquelas. Nessas coisas sou um bocado como os índios que não deixavam porque as fotos lhes tiravam energia. Mas eu até já dei autógrafos e deixei tirar selfies com água pelo joelho…
C: No mar?
RR: Sim, aparece gente em todo o lado. Já tirei num urinol, que também é um sítio engraçado, tem é que ser plano americano… Na generalidade, as pessoas são muito simpáticas e atenciosas. Sempre me deram mais fiambre quando vou às compras, “leva aqui mais umas gramitas”…
C: A mim é com os gelados. Digo que gosto de gelados numa das minhas músicas e às vezes dão-me o dobro da quantidade.
RR: Quero continuar a fazer isto porque já vi que não morro à fome.
C: Pior do que as selfies são aquelas pessoas que veem concertos através do ecrã do telemóvel. Irrita-me estar a ver um concerto com aquelas mãos todas levantadas a filmar.
Hoje conseguiriam encher um estádio como os GNR fizeram em 1992?
C: Eu não, mas artistas como o Anselmo Ralph ou o Tony Carreira, sim…
RR: Às vezes, uma só canção é capaz de o conseguir. Se aquela música acerta… Na minha geração era esquisito os grupos terem um só êxito. Agora esses moços, tipo One Direction, basta-lhes uma música de vez em quando. E têm uma máquina por trás. Eu continuo a achar isto artesanato urbano. Foi um dos grandes falhanços em termos de vida, e digo-o com uma certa mágoa porque gostava de viajar um bocadinho mais, foi o não haver uma indústria.
C: Mas não tinhas medo que nessa internacionalização as pessoas não entendessem os trocadilhos? É preciso ter um certo domínio da língua, dos costumes.
RR: Claro, é preciso uma certa vivência.
C: Lembro-me de um concerto que dei no Brasil e senti que as pessoas não compreendiam algumas nuances. E na minha música é importante perceber esses jogos.
RR: No Brasil, no nosso caso, não resultou por causa disso. Fomos a um programa de uma rádio daquelas importantes e o tipo ficou a olhar para mim “Réninho, você fala que nem Eça de Queirós…”. Perguntei “mas isso é um elogio ou…”. O tipo estava a gozar. Mas lá tudo que é português de Portugal tem legendas. Às vezes, vejo aqueles filmezecos meio-piratas e leio coisas hilariantes: “May day, may day!”, “Primeiro de maio, primeiro de maio!”. [Risos]
C: Eu não me consigo imaginar a cantar noutra língua. É o meu instrumento.
Os portugueses adaptam-se facilmente a outras línguas…
RR: São muitos anos a servir à mesa, muitos anos de porteiro e mulher a dias.
C: No caso do Brasil, são muitos anos a absorver a cultura deles e o contrário não acontece, tirando o colonialismo…
RR: Isso foi mais doenças, sífilis, tuberculose… Mas eles também se defendem. ?O Rock in Rio levou um chuto no rabo porque os músicos lá opuseram-se às condições que lhes davam comparadas com as das vedetas internacionais. Cá a malta contenta-se às vezes com o palcozinho do lado, no sunset. Mas lá estou eu a falar de festivais e quanto mais falo mais me lixo…
Já disse uma vez que sempre que fala contra a barragem do Tua nunca mais é chamado para um concerto com o apoio da EDP…
RR: É verdade. Ainda agora por causa deste single se chamar Cadeira Eléctrica já me disseram: “Lá vem ele com mais uma boca…” Mas é verdade, é o que eu penso. Só que estas coisas cá pagam-se mesmo. Todo o mandato do vice-rei [referência a Rui Rio, ex-presidente da Câmara do Porto] foi marcado por coisas dessas…
C: Tem tudo a ver com rio. Rock in Rio, barragem no rio, Rui Rio…
RR: Exatamente. E noto que as pessoas estão muito temerosas e sofrem muito. Vejo artistas que antes falavam com liberdade e agora estão calados. Levo nas orelhas “esteja mas é calado, faça lá o que julga que sabe fazer”. E insultam-me no Facebook…
C: Lemos as caixas de comentários dos sites dos jornais e dá vontade de emigrar. Muitos músicos também têm tendência para ser antissépticos, não prejudicar o almoço de amanhã… O medo de perder o pouquinho que ainda resta. Alguns músicos têm medo de perder o emprego, de chatear quem tem o poder. Isso também acontece porque são as empresas que patrocinam os festivais, são as câmaras que mobilizam o mercado de concertos. As pessoas têm filhos para alimentar e têm medo. Eu prefiro posicionar-me de forma mais expressiva e inequívoca.
RR: Nós [GNR] fomos convidados para o centenário da Universidade do Porto e depois soube que na reunião camarária fomos vetados. “O Reininho aqui? Nem pensar!” E eu vivo desta história, não é? Não ando aí a receber subsidiozinhos…
Mas isso não o condiciona?
RR: Dói, claro que dói. Já cortei no sal e na carne.
E leva-o a conter-se, a autocensurar-se?
RR: Se calhar, implicitamente sofro essa pressão. Nós somos uma equipa e se calhar alguns dizem “mas porque é que este gajo não está calado? Não ganhas nada com isso…”. Mas francamente…
C: A autocensura é muito poderosa. Neste país em crise, acho que já nos autoprogramamos. E há essa ideia de que se os músicos estão aqui para entreter para que é que estão agora a dar opiniões? “Façam lá a vossa música e estejam caladinhos…” A mim isso não me afeta tanto porque, como sou do rap, cumpro essa função da nova canção de intervenção.
RR: É, passarmos ali um bom bocado, não aflorarmos chatices e sairmos todos divertidos.
C: Já que o pão é pouco, ao menos que o circo seja bom [risos].
RR: Exato. Já que não houve croquetes…
Encostados ?à parede
Para além de cantarem os dois em português, têm em comum a pronúncia e o calão, ainda que o Rui até nem diga muitas asneiras…
RR: Também digo as minhas caralhadas [risos]
C: O rap também é essa coisa subversiva de pegar nas expressões do quotidiano e usá-las como matéria-prima para a criação artística. Nem recorro muito a uma linguagem muito encriptada como alguns rappers. Mas a palavra é o mais importante e a minha ligação à música é feita pela escrita. E como o rap é muito territorial e marcado pelas expressões e pelo património cultural de cada sítio, é normal que a minha música tenha sotaque, expressões do Norte, e as minhas referências culturais.
RR: Senão era só piiiiiiis.
C: Não que faça um grande esforço mas nota-se que sou do Porto e isso orgulha-me.
RR: Concordo que não se deve perder. Durante anos, tudo o que para mim é foleiro na chamada subcultura nacional era aquela obrigação, aquela treta, de falar à Cascais. Isso e o paternalismo.