Quando chegava a altura do ano em que ia passar férias com a família que vivia em Portugal, o angolano Anselmo Cordeiro da Mata só seguia uma regra: aproveitar ao máximo. O mais impressionante era a quantidade de brinquedos à venda na Feira do Relógio, em Lisboa. “Também havia jogos em Luanda, mas aqui a variedade era outra”, recorda o cantor de 33 anos, nascido na capital de uma Angola em plena guerra civil. “A tua realidade é sempre normal até conheceres outras diferentes”, explica o músico que só se confrontou com as consequências do conflito quando percebeu que havia países sem recolher obrigatório ou exército nas ruas. Hoje, Anselmo é um dos símbolos da Angola próspera e pacificada. A revista Forbes considerou-o o sétimo músico mais rico e rentável de África (foi o primeiro angolano a conseguir subir acima da 10.ª posição nesse top). O disco A Dor do Cupido (2013) vendeu 42 mil exemplares em 48 horas em Angola, enquanto em Portugal se mantém no top há 51 semanas. Proezas que tornam pouco surpreendente a ascensão do mais recente álbum O Melhor de Anselmo Ralph (2014) a disco de Ouro, em Portugal, em apenas duas semanas.
Os ténis excêntricos e os óculos escuros ajudam a camuflar a timidez desta estrela pop, mas a inibição não o impede de enfrentar plateias com milhares de pessoas, nem de se entregar às entrevistas e aos autógrafos de forma genuína. O músico confessa que a personalidade reservada talvez seja consequência dos episódios de bullying que sofreu na infância e adolescência depois de lhe ter sido diagnosticada, aos 5 anos, miastenia grave, uma doença neuromuscular que causa fraqueza nos músculos. No seu caso, foram afetadas as pálpebras. Os óculos escuros são essenciais para proteger os olhos da luminosidade e Anselmo assume-os, também, como um acessório de moda. Ao todo, tem mais de 80 pares.
Junto dos amigos e familiares, o músico não deixava transparecer os momentos complicados que viva na escola: “No meu círculo íntimo eu queria passar por uma pessoa sem problemas e preferia não falar”, recorda. “A minha arma favorita para me defender era a crença. Fazia muitas orações, conversava muito com Deus, isso deu-me muita força”, revela. Define-se como “cristão” e ler a Bíblia de manhã faz parte do seu quotidiano.
Artista em construção
A música foi conquistando espaço na sua vida e também se tornou num refúgio perante os momentos difíceis. Aos nove anos, o sonho de ser cartoonista começou a esmorecer para dar lugar a outro: cantar. A aproximação ao universo musical coincidiu com a mudança da família para Madrid, devido à carreira diplomática do pai (que também passou por Portugal entre os três e os cinco anos de Anselmo). Em Espanha, o hit que passava com insistência nas rádios era Burbujas de Amor, de Juan Luis Guerra. O músico dominicano passou, assim, a figurar na sua lista de ídolos, da qual já faziam parte Michael Jackson e os superheróis da Marvel.
Os pais divorciaram-se pouco tempo depois do regresso a Luanda e, aos 11 anos, Anselmo tornou-se o homem da casa, ficando a viver com a mãe e as três irmãs, uma delas sua gémea e com quem hoje mantém uma relação muito próxima – apesar de terem passado a infância “à luta”… Rodeado de mulheres protetoras e “barulhentas”, o cantor escondia muitas das suas aventuras para não as preocupar, como quando decidiu fazer uma prova de taekwondo, com escassos dias de aulas, e levou “uma coça valente”… “Se calhar, as minhas letras falam tanto às mulheres porque cresci no meio delas”, diz o músico, apelidado de “chorão” pelos críticos angolanos quando lançou o seu primeiro disco a solo, Histórias de Amor (2006), devido à elevada concentração de desgostos de amor em todas as faixas, com letras suas. O álbum só foi possível devido ao apoio da mãe, que adiou uma cirurgia para o patrocinar. Apesar das profissões dos pais, ambos ligados à representação diplomática, Anselmo não vivia propriamente de forma desafogada: “Era preciso batalhar”, recorda. A admiração pelo esforço dos pais fê-lo valorizar o trabalho. Quando sobe ao palco, diz, pensa nos sacrifícios que as pessoas fizeram para ali estar e sente a responsabilidade de fazer com que valha a pena.
A influência dos ‘States’
Antes de se lançar numa carreira a solo, o cantor fez parte de um grupo de hip-hop com os colegas da escola, os New Generation Band. Com eles, gravaria o seu primeiro disco, aos 15 anos. “Uma brincadeira”, classifica Anselmo, mas começava a desenhar-se o seu perfil de cantor romântico com toques de soul. A brincadeira tornou-se mais séria quando foi viver para Nova Iorque, onde o pai estava destacado como representante diplomático nas Nações Unidas, acompanhado da segunda mulher e dos meios irmãos de Anselmo. Foi lá que comprou o seu primeiro disco, aos 17 anos, da banda norte-americana de R’n’B Dru Hill. Apesar da paixão pela música, optou por inscrever-se num curso de Contabilidade. “Havia sempre aquela ideia de que a música não paga contas…”, diz. Por causa do bullying tinha desistido da escola e ingressou na universidade através de um programa de acesso dirigido a adultos que não tinham terminado o ensino secundário. Ao mesmo tempo, pertenceu a um grupo de rock latino e cantou num coro gospel. O pai garantia-lhe teto e comida, mas Anselmo teve vários empregos para conseguir pagar as propinas; lavar automóveis, conduzir camiões ou servir em restaurantes foram algumas das tarefas que desempenhou nos Estados Unidos. A música acabaria por derrotar os números – ficaram a faltar-lhe duas cadeiras para acabar o curso de contabilidade.
Kalaf Ângelo, músico angolano dos Buraka Som Sistema, acredita que a influência norte-americana é fundamental para a linguagem atual de Anselmo: “Aquilo que ele nos dá é muito contemporâneo”. Ter sido o primeiro músico dos PALOP a chegar ao primeiro lugar da tabela nacional de vendas, desde o 25 de Abril de 1974, também pode ser sinal de uma transformação cultural mais profunda. “A forma como nos relacionamos com África está a mudar. Quem o pôs no top não foi só a comunidade africana, foi toda a gente. Hoje, olhamos para aquilo que é produzido como um todo. Já não é a música dos pretos. Estamos todos a ouvir a mesma música”, reflete o cronista do Público, que acaba, aliás, de editar a coletânea de crónicas O Angolano Que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço), na editora Caminho. A ideia de lusofonia é uma novidade que “começa a ser vivida de forma genuína, sem ideologias”, conclui o cofundador da produtora Enchufada.
Fenómeno global
O próprio Anselmo Ralph tem dificuldades em encontrar os motivos que explicam o seu sucesso em Portugal. O cantor acredita que é fruto de uma mudança de mentalidade e não o causador dessa transformação. Para Kalaf é importante sublinhar o aumento de poder de compra da população africana residente em Portugal, nomeadamente a angolana, que passou a ir a grandes concertos e a comprar mais discos.
O promotor de espetáculos Zahir Assanali, administrador do Grupo Chiado (que tem trazido Anselmo a Portugal desde 2011), defende que a projeção atual da música angolana também se deve a um forte investimento na indústria musical do país. Um bom exemplo são os Angola Music Awards que contam com o apoio dos ministérios da Cultura, Hotelaria e Turismo e Juventude e Desportos. Na opinião do empresário, há outro fator que não pode ser desprezado: a emigração portuguesa para Angola. “O boom económico levou muita gente para lá e os portugueses são dados à miscigenação. Quando voltam, regressam com os ritmos de lá”, acredita.
O concerto de Anselmo no Meo Arena, em Lisboa, na segunda-feira, 8, será a celebração dos seus dez anos de carreira (apesar de ter começado há mais tempo, este é o período de maior reconhecimento popular). Os cantores brasileiros Daniela Mercury e Naldo Benny, os angolanos Anna Joyce e Paulo Flores ou a fadista Raquel Tavares serão alguns dos convidados do espetáculo, praticamente esgotado, tal como aconteceu na passagem anterior por esta sala e também no Campo Pequeno e no Coliseu dos Recreios, com lotação completa por duas noites para ver o artista angolano que terá um cachê a rondar os 70 mil euros. Este ano, deu outro concerto marcante na festa de aniversário do melhor jogador do mundo, Cristiano Ronaldo.
Habituado a circular entre países, não só devido à profissão do pai, mas também às deslocações com a mãe em busca de tratamento para a doença que o afeta, a vida de Anselmo divide-se, agora, entre Luanda e Lisboa. Além da presença constante nas rádios e salas de espetáculos nacionais, o cantor é uma figura assídua da televisão portuguesa enquanto jurado dos programas de talentos The Voice e The Voice Kids (RTP). As viagens constantes levaram-no a arranjar uma casa na margem sul, perto do mar, que define como um local onde vê verde e pode acordar com os passarinhos. “Mesmo quando me oferecem estadias em hotéis de Lisboa prefiro ir para a minha casa. Gosto de estar no meu canto”, diz, revelando o seu lado mais pacato, que não dispensa um bom calulu caseiro. Por enquanto, a mulher, Madlice Cordeiro, e os dois filhos, Alicia, de 7 anos, e Jadson, de 3 continuam a passar mais tempo em Luanda devido à escola das crianças, mas a família pondera viver em Portugal. Anselmo acredita que “é importante haver músicos que lutem pelo país e ajudem a mudar a imagem de Angola”, mas essa é uma missão que pode cumprir em qualquer parte do mundo, fazendo justiça ao cosmopolitismo da família. Atualmente, o pai vive na Bélgica e a mãe na China, onde desempenha a função de secretária do embaixador de Angola. Não surpreende, por isso, que a internacionalização faça parte da sua estratégia de carreira. No próximo ano, irá lançar um disco de duetos com artistas brasileiros, procurando impor-se nesse mercado. Também prepara um álbum com temas em inglês e espanhol para ir à conquista do continente americano. Os Estados Unidos são, claro, um dos principais objetivos. Anselmo sonha em colaborar com artistas como Justin Timberlake ou Stevie Wonder. Tal como, em tempos, desejava conseguir triunfar em Portugal: “O sonho de qualquer angolano é singrar aqui porque é muito prestigiante”. No palmarés, só lhe falta um concerto no Estádio da Luz, palavra de adepto benfiquista.
Portugal rendeu-se a Anselmo Ralph num contexto em que a própria relação entre os dois países está a mudar. O promotor Zahir Assanali sintetiza a nova ordem: “Os angolanos dão a música e os portugueses dançam”.