Londres, 21 de novembro de 2013. Dezenas de jornalistas de todo o mundo acotovelam-se e quase lutam entre si para obter o melhor lugar, numa conferência de imprensa há muito esperada. Um anúncio de uma reunião improvável, a confirmação de que cinco pessoas regressariam a um palco depois de terem mudado a cultura popular, o modo de pensar e rir. Uma espécie de Beatles do humor, que, entre outras coisas, já viram o seu nome perpetuado em asteróides, fósseis recém-descobertos, palavras como spam, dicionários e citações quotidianas, em que a autoria há muito se diluiu porque, pelas melhores razões, pertencem a toda a gente.
Finalmente, depois de algum tempo de espera, entram os desejados. São simpáticos septuagenários, alguns com dificuldade de locomoção, outros apresentando mazelas do tempo, mais ou menos visíveis.
Mas o olhar. O olhar de quem gosta de subverter, de quem está bem com a noção de que nada é sagrado, a começar por eles próprios e a terminar nos que estão ali para os ouvir. Por isso, perante os jornalistas atónitos mas, ao mesmo tempo, deliciados, os protagonistas da conferência de imprensa desatam a falar todos ao mesmo tempo, convictos do que dizem e tentando dizê-lo mais alto do que o colega do lado. Percorrem o palco, mudam de lugar, sobrepõem os discursos… E, de repente, para repor a ordem, entra um anão. É ele que, a custo, faz com que os cinco caóticos se sentem atrás da mesa, contrariados. Mesmo assim, a provocação final: toda a gente se senta no lugar errado, desrespeitando o nome que, na mesa, indica o interlocutor correto. E foi assim, no melhor estilo, que a conferência de imprensa dos reunidosMonty Python pôde enfim começar.
‘Circulem, não há nada para ver!’
Existe sempre um sentimento ambíguo, uma dúvida quase perversa, quando se anuncia o regresso de algo que crescemos a amar e julgávamos para sempre perdido para além do reino da memória. Há uma nostalgia misturada com o terror da desilusão. Quem assistiu a reuniões das suas bandas de rock favoritas sabe que o travo final pode ser agridoce, porque, em última análise, presenciamos a visão de nós próprios quando éramos mais jovens. Foi exatamente isso que disse Eric Idle, um dos Python, num documentário sobre o grupo (Monty Python, Almost The Truth The Lawyers Cut, 2009), questionado sobre uma futura reunião: “Não me parece boa ideia. O que as pessoas querem ver são elas próprias há 40 anos e não um bando de velhos a arrastarem-se em palco.” Mais recentemente, a pouco tempo do início da série de espetáculos (de 1 a 20 de julho) na londrina O2 Arena, outro dos membros fundadores do grupo, Terry Gilliam, afirmou já estar arrependido; que o regresso aos palcos era “uma coisa muito deprimente” e que “com sorte os espetáculos serão cancelados”. As pessoas “têm que perceber que somos agora muito menos sarcásticos porque gostamos mais uns dos outros”, acrescentou.
Afinal, onde é que está a verdade? E com tantas dúvidas, que motivos estarão por detrás de uma das reuniões mais desejadas da história do entretenimento? Em primeiro lugar, qualquer fã decente dos Python sabe que absoluta coerência e certezas inflexíveis são coisas com que não podem contar dos seus ídolos, pela simples razão de que esses sempre foram alguns dos alvos preferidos do grupo. Por outro lado, poderão sempre contar com a verdade, desde que esta seja a mais prosaica possível. E é. A razão porque o mundo irá assistir ao reencontro, em palco, de Terry Jones, 71 anos, John Cleese, 74, Terry Gilliam, 72, Michael Palin, 70 e Eric Idle, 70, é simples: precisam de dinheiro. Há uma hipoteca de Terry Jones que precisa de ser paga. Há um processo milionário relacionado com uma questão de royalties que foi perdido, obrigando o grupo a pagar mais de um milhão de euros (fora despesas judiciais). E, claro, há a luxuosa pensão de alimentos que Cleese tem de pagar anualmente à sua mais recente ex-mulher: cerca de 760 mil euros. Aliás, Michael Palin, referindo-se a esta última motivação, declarou, em quase pânico: “Não vejo o John há quinze dias. Pode ter casado outra vez.” A julgar pelos patrocínios, o recorde de vendas de bilhetes online para o que, no início, seria uma data única (desapareceram em 43 segundos!) e estando todos os espetáculos com lotação esgotada, tudo parece indicar que os problemas financeiros serão, no mínimo, mitigados. Para a história fica a verdadeira motivação da tournée Monty Python Live (Mostly): One Down, Five To Go (numa tradução livre “Um Já Está, Faltam Cinco”). O que “já está”, Graham Chapman, morreu em 1989, vítima de cancro mas ninguém tem dúvidas de que se está a rir neste preciso momento e sabe-se que, em imagens, vai contracenar em palco com os cinco sobreviventes.
Anatomia pythoniana
Um pouco de história, para os muito novos ou os muito distraídos. O que iria ser o coletivo de humor mais influente até aos nossos dias passou pelas exclusivas universidades de Cambridge e Oxford: Cleese e Chapman frequentaram a primeira, tal como Eric Idle (um ano mais novo), Terry Jones e Michael Palin foram alunos de Oxford. Todos colaboravam com as revues (tradução livre: revistas, espetáculos satíricos e musicais) das respetivas faculdades, escrevendo sketches e atuando. Estas duplas criativas com Idle manter-se-iam, com maior ou menor atrito, durante toda a carreira dos Python.
O norte-americano Terry Gilliam, futuro responsável pelas icónicas animações e atorquando-era-preciso foi descoberto por John Cleese, em Nova Iorque, durante uma representação de uma das revues de Cambridge.
Depois de terem escrito e atuado em vários programas televisivos, a estação ITV convidou Cleese e Chapman a criarem a sua própria série; ao mesmo tempo, a BBC fez a mesma proposta a Idle, Jones, Gilliam e Palin. Ao saber disto, Cleese que receava trabalhar exclusivamente com um irascível e cada vez mais alcoólico Graham Chapman convidou imediatamente Palin a juntar-se à equipa, ao que este respondeu afirmativamente desde que pudesse levar os seus amigos.
Estavam reunidos os Monty Python.
No dia 5 de outubro de 1969 a BBC emitia o primeiro episódio de Monty Python’s Flying Circus, nome cuja origem os próprios criadores se recusam a revelar, contando histórias contraditórias e sempre mais alucinadas (‘Monty’ tanto pode ser um tributo irónico ao marechal inglês e herói da Segunda Guerra, ‘Monty’ Montgomery, ou a um cliente habitual do pub que Eric frequentava).
Mas não era só no nome bizarro que consistia a novidade do programa: sketches cortados a meio e sem a tradicional punchline; créditos de abertura ou de final que apareciam a meio do episódio; referências absurdas e eruditas, como um jogo de futebol entre filósofos gregos e alemães; humor verbal e visual; autoparódias; separadores com uma animação dadaísta e cruel, e, sobretudo, a excitante noção, para os espetadores, de que nada nem ninguém estava a salvo…
Filipe Homem Fonseca, humorista e realizador ligado às Produções Fictícias, é um dos admiradores confessos dos Python que irá ver este derradeiro espetáculo do grupo.
Para ele, a enorme influência do humor pythoniano (o adjetivo correspondente em inglês, “pythonesque”, está há muito dicionarizado) é clara: “Eles não abriram portas, deitaram-nas abaixo e foram por ali fora, numa lógica de vale-tudo. Só que o nonsense é uma ciência exacta, ao contrário do que se possa pensar. Dá muito trabalho, é muito rigorosa.” Fernando Alvim, humorista e apresentador, concorda: “Lembro-me de uma entrevista do John Cleese em que perguntavam se muito do que se via nos episódios que celebrizaram era ou não um claro improviso. Ao que Cleese, respondeu: ‘Sim, as vírgulas’.” Para Alvim, “os Monty Python estão para o humor como a Amália para o fado ou o Bob Marley para o reggae. Com a diferença de que estão vivos. Enfim, quase todos…”.
A pouco e pouco a estranheza foi-se transformando em culto e na ansiedade dos espectadores em saberem “o que é que aqueles malucos irão inventar mais?”. E eles todas as semanas correspondiam com ataques a intelectuais, gozo com preconceitos muito britânicos ou pura e simplesmente momentos totalmente destituídos de mensagens mais profundas… A música do genérico do programa (a marcha Liberty Bell, de John Philip Sousa, que terá sido escolhida por estar em domínio público e portanto ausente de pagamentos de direitos autorais…) era cada vez mais assobiada nas ruas.
Frases como “And now for something completely different…”, “number three the larch” ou “this is an ex-parrot!” passaram a fazer parte do quotidiano popular, certamente a maior ambição de qualquer humorista.
O sucesso atravessou o Atlântico e, de repente, os Python representaram a segunda invasão britânica da América, depois dos Beatles. Os seus espetáculos no Hollywood Bowl foram algo mais do que um simples show: uma verdadeira liturgia, em que os fiéis na plateia muitos deles vestidos como os seus personagens favoritos recitavam canções e falas de sketches. Algo que Homem Fonseca prevê acontecer nestas representações: “Não sei bem o que esperar. Sei que me vou rir, num ambiente de concerto com o pessoal a acabar os sketches. E sei que mesmo que um deles morresse em palco os outros iriam gozar com isso e o público rir-se-ia… “.
Um primeiro final
As fortes personalidades de cada um dos Python ditaram o final, como é costume suceder nas melhores parcerias. Chapman, alcoólico assumido, tinha um comportamento cada vez mais errático. Cleese, um perfeccionista possuído daquela englishness de que tanto troçava, perdia a paciência.
E nunca recusou a fama de ser o mais materialista do grupo, chegando atrasado às reuniões de escrita por ter dificuldades em “estacionar o Rolls”. Para o telúrico galês Terry Jones isso era inadmissível, uma traição à arte. Os conflitos criativos e pessoais aumentaram de escalada até que Cleese abandonou o grupo na penúltima série.
A temporada final do Monty Python Flying Circus, já sem Cleese, sofreu com a sua ausência, embora tenham sido representados sketches da sua autoria. Da série de 13 episódios encomendados pela BBC foram apenas exibidos seis, por exigência do grupo que afirmou não ter entusiasmo para mais…
Apesar de tudo, a colaboração continuou viva e frutífera no cinema. Monty Python e o Cálice Sagrado, A Vida de Brian (coproduzido por um grande fã do grupo, o beatle George Harrison, e que provocou violentas reações de várias igrejas cristãs, que viram no filme uma paródia a Jesus, desencadeando um longo debate sobre censura e liberdade criativa) e O Sentido da Vida ajudaram a aumentar o culto do humor a la Python.
Uma vez Python…
Em Portugal, a série chegou à RTP logo na segunda metade da década de 70, um feito de atualização bastante louvável naqueles tempos conturbados, sob o nome Os Malucos do Circo. Depois disso, houve várias reposições (a última já na RTP Memória). Com isso, a forma de fazer humor mudou em Portugal, como o provou O Tal Canal, de Herman José, e mais tarde toda uma geração de comediantes filiados neste tipo de humor e cujo coletivo mais conhecido é o Gato Fedorento.
Os septuagenários que, neste mês de julho, se irão “arrastar pelo palco” (Cleese já anunciou que não fará o famoso sketch Silly Walk, por causa das suas próteses no joelho e na anca…) mudaram a maneira de nos vermos ao espelho, atravessando esse espelho e rindo-nos do outro lado. E, no entanto, 30 anos depois da sua última reunião, não baixam a guarda: ao ser divulgado que a Gold TV iria transmitir para todo o mundo, em salas de cinema (em Portugal nos cinemas UCI, em Lisboa e Porto), o espetáculo de dia 20 em direto, Eric Idle apressou-se a declarar: “Estamos muitos excitados com esta oportunidade de podermos lixar tudo ao vivo num palco e agora também em direto para todo o mundo!” Deus os conserve assim, nem que seja para gozarem com Ele.