Se a Academia fosse um pouco menos cinzenta teria a coragem de nomear Scarlett Johansson para o Oscar de Melhor Atriz pelo seu papel invisível em Her – Uma História de Amor. O personagem principal apaixona-se pela sua voz. E quem o pode censurar? O espaço que a voz de Smantha ganha, sem presença física, na história de um homem que se apaixona pelo seu sistema operativo é extraordinária. E se o cinema é som e imagem, neste caso uma voz vale por mil corpos. Tudo isto, claro, só poderia vir da cabeça de Spike Jonze, um dos mais criativos argumentista de Hollywood. E este talvez seja o seu melhor filme desde Quem Quer ser John Malkovich? (1999, com guião de Charlie Kaufman). Seria um justíssimo vencedor do melhor argumento, caso houvesse alguma justiça na atribuição de Oscars.
O domínio da oralidade é pois uma das grandes questões levantadas pelo filme. Na sua estrutura é comandado por uma voz sem corpo, numa sociedade em que a linguagem oral substitui a escrita, quase que sugerindo uma progressiva alfabetização, assim como, para já, poderemos estar a assistir a uma progressiva desaprendizagem caligráfica (já nem os manuscritos são escritos à mão). Não é só o escritor que dita as palavras em vez de as escrever (o que, aos nossos olhos, é um contrassenso, porque estamos mais habituados à preparação escrita de um discurso oral), são também os transeuntes de Her, mais ainda do que os nossos dias, circulam em conversas ‘consigo próprios’, distantes de quem lhes está fisicamente próximo, e próximos de quem lhes está distante, mesmo que esse alguém não tenha existência física.
Parte do fascínio no filme de Spike Jonze está na ideia de ficção científica a curto prazo. Um futurismo ao nosso alcance. Grande parte da tecnologia exibida é nossa contemporânea, apenas não está tão aperfeiçoada ou democratizada. Não há explicitamente um julgamento moral pelo caminho tomado pela sociedade.
As relações amorosas entre seres humanos e sistemas operativos são inclusive bem aceites, a sociedade é tolerante, apesar de recorrer a um escritor-fantasma para exprimir sentimentos. Contudo não há um radicalismo na ideia de incomunicabilidade social. Apesar de Theodore, depois do divórcio, se autoinfligir o estatuto de bicho-do-mato, tem uma teia de relações de proximidade, sobretudo com Amy (Amy Adams)… Como dizem os Daft Punk, ‘Human after Al/’.
Se num plano, Her é uma reflexão especulativa sobre o futuro da humanidade, em termos sociais, através das consequências do progresso tecnológico, por outro é uma reflexão radical sobre o amor. Samantha é um novo sistema operativo desenvolvido para servir, mas com inteligência para aprender. A grande questão é que a aprendizagem não é puramente racional, mas também emocional, e ao ser possuída por um escritor de cartas de amor, as suas capacidades nesse domínio desenvolvem-se absurdamente. Samantha aprende a amar. E a ser amada.. Estamos eventualmente perante aquelas questões que, volta e meia, são capa de revista: a explicação científica do amor ou, neste caso, saber se o amor poderá ser programado.
Só que enquanto a relação de Theodore tende para uma estabilidade emocional, Samantha nunca perde a capacidade evoluir.
Questões prementes se levantam, à medida que, como uma criança que se torna adolescente e depois adulta, Samantha vai saltando etapas da sua evolução e da sua autonomia. A inferioridade (inexistência) física é colmatada pela superioridade metafísica. Não tem um corpo mas almeja conscientemente a vida eterna.
Her tem todas as condições para se tornar uma obra de culto, ao lado de Blade Runner (Ridley Scott, 1982) ou Matrix (irmãos Wachowski, 1999). Um filme diferente, com bons pormenores que vão além da criação do cenário, grandes interpretações de Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson, e a magnífica banda sonora dos Arcade Fire.
Her – Uma História de Amor, com Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Chris Pratt, 126 min