De cada vez que Steve McQueen remexe em qualquer tema delicado – profundamente humano ou tragicamente desumano-, como sejam as greves de fome dos membros IRA (Hunger), as obsessões sexuais (Shame), ou a escravatura nos EUA, na segunda metade do século XIX (12 Anos Escravo), podemos contar que não se “limpidifiquem” as águas revolvidas tão cedo… Os sedimentos da corrupção e da podridão dos homens não vão ao fundo, ficam por ali, a boiar, a deixar para sempre as águas sujas, de sangue ou outros fluídos. Neste último caso, são os campos de algodão da Louisina que estão aspergidos de sangue, e as sórdidas casas sulistas contruídas sobre os macerados ossos de muitos homens, mulheres e crianças. Depois de Spielberg ou de Tarantino terem ousado esgaravatar na história recente americana, o realizador e artista plástico britânico faz aqui a sua obra mais convencional, menos estilizada, mas mais crua, sem o lado delicodoce ou sentimental de Spielberg, sem o fantasismo delicioso de Tarantino ( e o alívio catártico da vingança, também). É que aqui não há filtros para aveludar o passado dos norte-americanos, nem personagens caridosas -pode haver umas mais benignas mas o filme é todo ele despojado de compaixão. E mais uma vez, a religião é uma espécie de cúmplice que abençoa todas as atrocidades, todas as inclemências. O princípio é muito kafkiano, não no sentido habitualmente utilizado de O Processo, de o homem preso, acusado sem saber de quê. Mas mesmo no sentido de Metamorfose: o homem músico, pai de família, que acorda um dia transformado num ser rastejante, que todos calcam, e esmagam, e fazem rodar o pé, até desaparecer não o homem, mas o próprio conceito de homem. É isto ser-se escravo, ser-se desapossado da sua própria identidade, ser-se propriedade de alguém, dos mais lunáticos, sádicos, boçais donos de plantações. Sério candidato à nomeações dos óscares, com já garantidas sete nomeações aos Globos de Ouro, o filme baseia-se numa história verídica, um homem negro e livre, um músico de Nova-Iorque, que é raptado e obrigado a curvar o lombo, e a cabeça, perante os proprietários. É assim que se consegue sobreviver, anulando-se, despersonalizando-se, tornando-se homens e mulheres-sombras, nunca mostrando que se tem alguma dignidade. Só que ele não quer limitar-se a sobreviver: ele quer viver. É duríssima a cena do lento enforcamento, em que os pés patinam e quase deslaçam na lama, aquele em que uma mulher não é chicoteada, mas praticamente esfolada viva, como se fazem aos animais comestíveis. É o horror, em suma. Voltamos ao tão inconveniente tema do holocausto negro, e dos campos de algodão como campos de concentração. E até a música negra ganha uma dimensão sinistra, como aquele ritmo lento, indolente, de morte, chicote e resignação.
12 Anos Escravo
De Steve McQueen. 12 Years a Slave, comAshley Dyke, Bryan Bat, t Chiwetel Ejiofor, Dickie Gravois, Dwight Henry, Kelsey Scott Lupita Nyong’o, Michael Fassbender, Quvenzhané Wallis. Drama. 134 min. Reino Unido. 2013