Confesso. Antes de começar a ver J Edgar senti um entusiasmo vingativo prevalecer sobre a simples vontade de ver um filme. O bio-pic de Clint Eastwood, sobre a vida do fundador do FBI, soou a oportunidade para retribuição através da verdade. É senso comum que a verdade ganha validação e consistência depois de retratada no grande ecrã. De uma forma distorcida, o cinema pode funcionar como um acelerador de verdades. Era esse sentido de justiça que ansiava em J Edgar. O retrato de um puritano repressivo, com complexos de inferioridade pela sua estatura, um todo-poderoso que só queria fazer a mamã orgulhosa, um homem à antiga, com fortes convicções cristãs, que se opunha à pornografia, à contracepção e qualquer forma de badalhoquice. Para defender a pureza americana Hoover perseguiu Charlie Chaplin, chantageou Bobby Kennedy e conduziu pessoalmente a charada de investigação ao assassinato de JFK. Lançou rumores sobre a homossexualidade adversários político, espiou a mulher de Roosevelt, que supostamente teria um affaire lésbico. Gravou Martin Luther King na cama com uma groupie e enviou as provas para a esposa do prémio Nobel. A classe!
Parte destas tramóias viram a luz do dia depois da sua morte, passando de paladino da justiça para um grau de pequeno vilão, um Nixon de segunda, engenhoso e peçonhento conspirador obcecado por foices e martelos, inimigos invisíveis e um sentido de ordem psicótica.
Desde cedo se discutiu, em surdina, a orientação sexual do próprio Edgar Hoover. O facto do filme de Eastwood explorar essa parte da vida de Hoover e retratar a relação amorosa que mantinha com o seu número dois de longa data parecia a fórmula para o jackpot vingativo.
Dito isto, esperava de um banho de sangue metafórico, dentro da medida hollywoodesca e mais um aviso ao mundo para ter atenção com sociopatas reprimidos, ultra-moralistas, em posições de comando. Ok, retirei alguma satisfação da hipocrisia, mas essa sensação ficou incompleta e só a consegui desvendar depois de pensar um pouco sobre o filme. Nem sempre é fácil responder linearmente à questão: Então? Gostaste do filme? J Edgar é bom um exemplo disso mesmo.
Eastwood teve o grande mérito de humanizar Hoover, mérito dividido com Leonardo Di Caprio, que mais uma vez esteve muito bem. A atmosfera do filme está carregada de sombras, ambientes escuros e ambíguos, um pouco como o personagem central. Quando vejo um bio-pic, se o realizador não optar pela via satírica, espero um retrato o mais fiel possível à realidade. Nesse aspecto não há como fugir às terríveis caracterizações do filme, em especial de Armie Hammer, que interpreta o papel de Clyde Tolson, o braço-direito e amor platónico de Hoover. O velho Clyde parece sofrer de uma doença que lhe cobre o rosto com um pedaço de plástico bege. Também foi perturbante ver a caricatura de Bobby Kennedy (a interpretação de Jeffrey Donovan parece retirada de um sketch de Saturday Night Live) a falar com uma exagerada entoação discursiva à la Kennedy. Mas os problemas não se ficam por aqui. A própria forma como os Estados Unidos encararam a segurança nacional durante o consolado de Hoover não foi explorada como merecia, em parte por culpa da dispersão narrativa típica de um bio-pic que retrata 60 anos da vida de alguém como Hoover.
No entanto, parece que Clint Eastwood voltou a ter interesse, depois da monotonia de Hereafter, Changeling e Invictus (abro uma excepção para Gran Torino), mas não exageremos. O ex-Dirty Harry consegue captar algumas facetas do ego de Hoover, desde a mania das grandezas de quem pensa ter nascido para ser um herói, aos exageros dos seus méritos e dos perigos sobrenaturais do comunismo. Toda a ambiguidade e as fantasias egomaníacas chegam ao zénite quando Hoover assiste à parada presidencial e parece receber as palmas dirigidas ao novo presidente. Outro ponto alto do filme, em termos dramáticos/freudianos, é a cena em que J Edgar veste as roupas da mãe recém-falecida num rasgo de Norman Bates. Esse momento e a explosão de ciúmes do personagem interpretado por Armie Hammer, quando J Edgar pondera casar com uma actriz com quem se envolveu fisicamente são dos mais marcantes da narrativa. Quase me esqueci do pedaço de plástico a tapar a cara de Hammer.
Pelo meio o filme desenrola-se de uma forma algo neutra, descomprometida, cinzenta, sensaborona. Confesso que a figura quase mitológica de Hoover me fascina/repulsa há algum tempo e sem este factor duvido que o filme me mantivesse interessado.
Esperava que Clint Eastwood tivesse concretizado melhor o retrato de Hoover, que tomasse uma posição mais vincada, nem que para isso se focasse apenas num aspecto. Por exemplo, a forma “Psycho” como a mãe (interpretada por Judi Dench) formatou um nerd da catalogação num diabrete capaz de chantagear o homem mais poderoso do mundo. Ou a forma como uma vida inteira trancado no armário da repressão sexual o transformou num mercenário político sem grande pachorra para escrúpulos ou direitos civis. Será que Hoover nunca deixou a sua libido correr à solta? São tantas a perguntas que ficam sem resposta. Talvez J Edgar seja uma personagem demasiado ambígua e abrangente para duas horas de cinema, pelo menos para as capacidades de Eastwood. Ficou um travo a brandura. Talvez a lente de Clint Eastwood precise de um pouco da assertividade da Magnum 44 de Dirty Harry.