João Mota sempre foi homem de fé. Chegou a pensar ser padre, mas o teatro roubou-o à Igreja. Na guerra, esquivou-se das balas e dos traumas, na ditadura fintou a censura e fez teatro de peito aberto, nas aulas do Conservatório e no palco do Teatro da Comuna mostrou como se pode ir sempre mais longe. Por isso, encara o novo desafio de dirigir o Teatro Nacional D. Maria II em tempo de crise com naturalidade – vai tentar, promete. Nunca desiste, à partida, foi assim a vida inteira.
Nariz vermelho, calças presas por uns suspensórios de corda e um sorriso sincero. Chamava-se Bão e queria dizer “estou vivo, vamos transformar isto tudo”, queria provar-nos que se pode sonhar e do nada fazer futuro, queria enfrentar as austeridades e ensinar-nos a gostar de nós, a crescer, a acreditar e a transgredir. Assim era o personagem criado por João Mota em 1975 e que o acompanhou durante 18 anos a todos os cantos de Portugal e por vários lugares do mundo. O nome ganhou-o da forma como o ator e encenador se referia a si quando era pequeno – afinal, Bão também queria “alimentar a criança que habita em nós”.
Aos 69 anos, João Mota não lhe perdeu o espírito. Tal como o seu personagem, prefere arregaçar as mangas a baixar os braços. Não recusou, por isso, o convite que lhe fizeram para ser o novo diretor do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, depois de Diogo Infante ter decidido que, com as condições austeras impostas pelo Governo, era impossível continuar no cargo. João Mota quer tentar, como sempre tentou, a vida toda. Nunca foi homem de medos nem de lamentos. Acredita que, se não há dinheiro, é necessário fazer com menos e encontrar soluções que passem pelo mecenato ou por uma associação de amigos do D. Maria II. Acima de tudo, defende que é preciso apostar na educação, criar o hábito de ir ao teatro e mostrar como a arte do palco nos faz chegar a nós e aos outros. Neste agoirento 2012, João Mota há de completar, em outubro, 70 anos de idade e celebrar quatro décadas de atividade do seu Teatro da Comuna – convicto de que vale sempre a pena lutar.
Vir para uma casa destas, neste momento, dá-nos a responsabilidade de avançar para o futuro. Estar em crise cria o perigo de nos acomodarmos. E é exatamente aí que o teatro tem um papel muito importante: dar passos em frente, inquietar, alertar, projetar futuros. Vivemos numa época em que tratamos pouco do Homem. A sociedade rouba-nos a alma, o saber ouvir, o saber ver. Há mais barulho do que música, quem fala mais alto é que tem razão. É uma época muito difícil. Vamos ter que mudar de sistema, é visível que este não funciona. Claro que vai demorar tempo. Já os gregos dizem que depois do caos vem a luz e que não há crescimento sem crise. Não se pode é repetir sempre a mesma crise. Na Europa, começam a vir ao de cima a mediocridade, a violência, a maldade, a inveja. E se não for a arte, a besta sai da pior maneira. Por isso, para mim, vir para o Teatro Nacional é assumir essa responsabilidade que todos temos que ter: avançar. Temos que ter a coragem de ser um elemento transformador. Se não, como dizia a Natália Correia, é “adormecer cadáveres ao nosso ombro”. Penso sempre que é possível tentar. Tenho essa coragem. Disse: “Sim, vou tentar”.
Coragem e responsabilidade sempre foram duas palavras que acompanharam João Mota. Cresceu depressa aquele menino que, aos 3 anos, fez numa viagem de comboio de Tomar até Lisboa, com a mãe, a avó, a tia e a irmã dois anos mais velha do que ele. Para trás, ficava a cidade onde nascera e o pai, com quem a mãe se zangara depois de João ter nascido, e com quem o ator nunca chegou a ter uma relação (mais tarde, em entrevistas, repetiu que não chorou quando o pai morreu, vítima de cancro, aos 48 anos, e que lhe ficou na memória magoada aquela vez em que esteve horas à porta de casa, vestido a rigor, à espera que ele o fosse buscar para irem à Feira Popular).
Em miúdo, ouvia sempre “não podes ser como o teu pai”. Habituei-me a uma grande responsabilidade. Aos 7 anos, a minha mãe dava-me o dinheiro para eu ir pagar a renda de casa, ali umas ruas ao lado. Quando ia para a escola, de manhã cedo, ainda levava nos ouvidos o matraquear de uma máquina de coser da minha mãe, que era modista. Tinha 19 empregadas, de quem a minha tia tomava conta. A minha mãe cortava e atendia as freguesas. E aquela máquina trabalhava até às seis, sete da manhã, para termos dinheiro para estudar. São coisas que não esqueço. A minha mãe ensinou-me a coragem – sem dizer que me estava a ensinar. Isso foi maravilhoso. Era uma loba, era incapaz de casar com uma mulher como ela. Quando a minha avó, que tomava conta de mim, morreu, deixei de ser criança, tinha uns 10 anos. Mais tarde, quando a minha mãe morreu, percebi que mais ninguém ia falar de mim, de quando eu tinha 5 anos, 6 anos… Isso acabou ali. Viver com quatro mulheres fez de mim silencioso. Ainda hoje sou muito tímido, apesar de fingir que não. Recolhia-me muito, o silêncio já nessa altura era essencial para mim. Podia ficar duas horas, sentado, sem falar a ninguém em casa, a pensar, a viajar.
Mas não vale a pena imaginar João Manuel da Mota Rodrigues um menino sempre fechado em casa. Apesar de tímido, nunca deixou de fazer alguma coisa. Jogava à bola na rua com os vizinhos, fazia asneiras e metia-se em bulhas como qualquer outro da sua idade (na escola, chegou a partir a cabeça ao filho do médico), fez atletismo, foi campeão de pingue-pongue… e, quando a irmã Teresa enviou o nome dela e também o dele para o concurso do programa infantil de Madalena Patacho na Emissora Nacional, nem hesitou quando foi chamado a dar a voz. Tinha 8 anos e, aos 10, com a chegada da televisão, estreou-se no teatro (então transmitido na RTP), em O Mar, de Miguel Torga. Rapaz de voz grossa, arranjaria coragem de escrever a Amélia Rey Colaço para lhe pedir um papel numa das peças do Teatro D. Maria II, que, na altura, a atriz dirigia. A casa que agora voltou a ser sua deu-lhe emprego durante quase dez anos. Pisou o palco ao lado da irmã, Teresa Mota, e também de figuras como Mariana Rey Monteiro ou Palmira Bastos. Deixou de estudar (para tristeza da mãe que o imaginava empregado bancário), mas, aos 15 anos, já tinha conhecido a escrita de Camus, Breton, Sartre ou Craveirinha, pela mão de uma explicadora de francês, D. Ema, cabo-verdiana antifascista que lhe abriu horizontes. Enquanto se fazia ator, fez-se também encenador, dirigindo grupos de teatro amador, como o da Igreja de Fátima, onde também deu catequese, ou da Papelaria Fernandes. Por um triz que não vestia a batina de padre, convencido por um Cristo que o aliviava da falta de um pai, mas ainda hoje se imagina frade, a andar por aí a ajudar as pessoas, a ser útil aos outros. Pertenceu à Juventude Operária Católica, organizou um grande encontro, no Estádio de Alvalade, tudo antes de se desiludir do catolicismo e de se aproximar de outras fés (“gosto muito do taoísmo”, diz). A separação começou por se dar em África, quando enfrentou os horrores da guerra, para que foi bruscamente chamado, em 1965, a poucos meses de terminar o serviço militar e a meio de uma peça em que era protagonista, no Teatro Nacional.
Foi um choque. A minha mãe estava praticamente cega e tinha sido essa a razão para eu não ter desertado ainda. Ajudei vários amigos a fugir para França, mas fiquei. Fui colocado numa zona muito má. Ao meu lado, morreram 12 e uns 53 ficaram feridos para toda a vida. Vi colegas morrer e pensei: “Ainda bem que não fui eu.” Mais tarde, senti-me profundamente egoísta, mas… Tinha que sobreviver, organizei um grupo de teatro, no mato, e dizia poesia. Um dos poemas que declamava era O Menino de Sua Mãe, do Fernando Pessoa: “Malhas que o Império tece, jaz morto e apodrece o Menino de sua Mãe…” Havia uns que cantavam canções do Roberto Carlos, andávamos pelo mato a viajar só para levar essa alegria aos outros. O primeiro morto que tive nem sequer foi em combate. Ele estava a escrever uma carta à mãe, a dizer que não ia para a operação no dia seguinte… Era o Batista, acordeonista. Outros estavam a limpar as armas, para partirem, e há uma arma que se destrava e cortou-o ao meio. Eu estava a trabalhar com o comandante e ouvi aquele “tatatatatatata”, fui a correr e a minha ideia era juntar o corpo… Foi terrível, essa imagem, não a esqueço nunca. Levei 24 soldados a fazer exame da quarta classe e outros a fazer o exame do segundo ano, porque os soldados não podiam regressar sem terem a terceira classe. Quando voltámos, muitos deles puderam estudar, tirar o quinto ano e serem empregados bancários. Mas quando tinham ido para a guerra não sabiam ler nem escrever. Isso ninguém me paga, foi maravilhoso, é daqueles momentos em que se encontra Deus… Ainda hoje temos almoços do Batalhão. Agora, só posso ver o lado positivo.
Na guerra, percebeu que queria fazer um teatro diferente, ser mais do que um debitador de textos. Quando regressou, dois anos e três meses depois, foi o encenador Adolfo Gutkin, seu professor de teatro, que lhe tirou de cima dos ombros o peso que trazia da guerra e o deixou mais disponível para criar. Pouco depois, numa visita à irmã, que, entretanto, se mudara para Paris, apanhou o Maio de 68 que ateou a sua vontade de transformar o mundo. Em 1970, foi o único escolhido, numa audição, pelo encenador Peter Brook e não hesitou em ir com ele para França. Tudo se transformou, aprendeu que o ator é, de facto, um criador onde habita o texto, e que é ali em palco que se deixa cair a máscara que se usa na vida real. Passado um ano, decidiu voltar, para travar “uma luta cultural que estava por fazer no fascismo e para a qual era preciso coragem”. Voltou também para dar aulas, essa outra paixão que descobrira na guerra, e foi o primeiro professor convidado para integrar a reforma do ensino artístico de Veiga Simão e Madalena Perdigão. Durante mais de 30 anos, lecionou no Conservatório e por ele passaram gerações e gerações de atores portugueses. Muitos chamam-lhe mestre e mentor, como Diogo Infante, que agora João Mota substituiu no Teatro D. Maria II (“Ainda bem que é o João”, disse-lhe Diogo, quando soube). Miguel Seabra, hoje ator e encenador, é outro dos que recorda, com carinho, os ensinamentos de João Mota, os “momentos marcantes” que com ele passou e a forma como o seu antigo professor “falando de teatro, fala da vida.”
No Conservatório e no palco, foi fazendo a sua revolução cultural. Em 1971, fundou o grupo Os Bonecreiros, encenou a história de uma tartaruga que procurava a liberdade – e, por falta dela dentro da companhia, acabou por sair, juntamente com Manuela de Freitas, Carlos Paulo, Francisco Pestana e Melim Teixeira. No dia 1 de maio de 1972, nascia a Comuna – Teatro de Pesquisa, nome votado pelo público de um programa na Rádio Renascença e preferido a outros dois propostos pelo grupo: Cómicos e Comediantes. A escolha nunca lhes trouxe sossego, nem antes nem depois do 25 de Abril. Primeiro, chamaram-lhes hippies e drogados, a seguir catalogaram-nos a todos de comunistas, chegaram até a sugerir-lhes que mudassem de nome. A estreia foi, quase por acaso, no dia de anos de João Mota, 22 de outubro, com a peça Para Onde Ís, uma criação coletiva a partir de Gil Vicente. Ao regime de Marcello Caetano, respondiam com duas versões do mesmo espetáculo (uma para a censura, outra para o público), fintavam as interrogações dos inspetores da Pide, com os segundos sentidos das peças que encenavam e chegaram à Revolução com um processo de averiguações e de prisão em curso. Depois, foram as lágrimas, recorda João Mota, três dias sem ir à cama, um País inteiro percorrido a levar o teatro que faziam, a ver o povo reagir e a descobrir-lhe a alma.
Nestes 40 anos, a Comuna acabou por ganhar contornos de escola. Pela vivenda cor-de-rosa da Praça de Espanha – ocupada pelo grupo e pelo público, após um espetáculo – passaram outras tantas gerações de atores e criadores, que, sublinha Carlos Paulo, ali aprenderam com João Mota a descobrirem-se e a ultrapassarem-se, “a ir sempre mais longe, porque o teatro tem que acompanhar a vida”. Uma casa de crescimento, como o encenador gosta de lhe chamar. “O João seria um fantástico treinador de futebol”, assegura o amigo Carlos Paulo, aquele que mais vezes protagonizou as peças por ele encenadas. “Como dizia o Mourinho, um treinador de futebol tem de gerir as sensibilidades no balneário e um encenador é a mesma coisa. O João possui uma capacidade de trabalho extraordinária e consegue envolver as pessoas todas na mesma paixão. É um extraordinário encenador e um pedagogo fantástico.” Em ano de comemoração, João Mota prepara-se para estrear mais uma peça da Comuna, A Controvérsia de Valladolid, de Jean-Claude Carrière, desta vez, em casa alheia, o Teatro São Luiz, em Lisboa, no dia 25 de abril. Um texto sobre os abismos entre nós e o outro, um olhar sobre “as formas contemporâneas de exclusão que, por detrás da sua aparência económica, questionam o existir”, uma leitura destes tempos difíceis que, ainda assim, não impedem João Mota de tentar. Na Comuna, no Teatro D. Maria II, na vida fora do palco.
Nada é sacrifício quando temos prazer. Se todos gostassem do que estão a fazer, seria tão bom construir uma sociedade assim… Exijo muito às pessoas, ainda grito muitas vezes, sou daqueles que atiro uma coisa para o chão para não bater numa pessoa. Um chefe é fazer fazer e para isso tem que dar o exemplo. Custa-me muito a preguicite, nas pessoas. Temos que estar todos na mesma onda, temos todos que gostar do que estamos a fazer. Raramente digo que estou doente – ontem, por exemplo, capotei o carro, mas não me queixo – se eu disser que me dói alguma coisa, vão logo dizer “e a mim dói-me isto”, “e eu tive uma insónia e não dormi”… O jogo do coitadinho, do “tenham pena de mim”, do “sou um infeliz”, do “tenho um filho sozinho” – eu fiquei com um filho sozinho quando ele tinha dois anos e meio, mas nunca disse isso. Claro que deu trabalho, levava-o para as aulas porque não tinha onde o deixar, mas não me vou queixar de ter sido pai solteiro, dava-me um prazer enorme. Tive sempre problemas. Querem que diga que tenho asma? Querem que diga que tenho uma prótese na perna esquerda e outra na perna direita? Querem que conte as minhas mazelas? Estão cá, vivem comigo, qual é o problema? Habituamo-nos a viver com o que temos. Não se pode ter tudo. Quem quer ter tudo, muitas vezes, não consegue ter nada. Já dizem os chineses que a chávena está cheia e entorna. O teatro dá-nos isso. Toda a manifestação artística tem o sentido do belo, da viagem exterior e interior, isso é essencial na vida. Por isso, a coragem está em mim, o sentido de revolta está em mim.