Uma revista on line americana, Slate, disse, a propósito do novo filme de Herzog, A Caverna dos Sonhos Esquecidos (estreia-se hoje, dia 5): “Se é um membro da raça humana, deve ver este filme”. E neste comentário aparentemente silogístico (nós lemos a frase, logo somos humanos, então devemos ir ver o documentário de Herzog), pode estar contida a ironia do absurdo ou a zombaria de não se considerar todos nós, seres letrados, membros da raça humana. Seja como for, diremos mesmo mais, com a redundância que os irmãos Dupont e Dupond legitimam: “Todos deviam ir ver este filme, mas, se acaso, não forem membro, da raça humana, admite-se que o assunto não os entusiasme tanto – e ainda assim…”. Algo nos diz que o alemão, 68 anos, que já leva quatro décadas de ficções e documentários aprovaria esta insinuação. Ele que sempre olhou o mundo e os outros membros da raça humana com um reparo alienígena. Que sempre se moveu a curiosidade, daquela genuína, quase de criança, sem nunca se acanhar por manter aqueles olhos de assombro e espanto que tornam insólito o trivial, e especial o quotidiano. Enquanto outros se movem a “receitas de bilheteira” ou a reconhecimento” ou “tendências da moda” e a outras energias poluentes, ele move-se a inquietude, que sempre admite o espanto. E esta sua curiosidade, inquietude e espanto (e alguma obstinação) levou-o até à cratera de uma vulcão em ebulição (1977); levou-o até à selva peruana, enfrentado enxurradas, paludismos, e ensalubridades várias (além do feitio irascível do ator Klaus Kinski) para filmar o seu insane Fitzcarraldo (1982); ou até ao ponto onde todos os meridianos convergem, na Antártida (2007)…
Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos, Herzog não foi longe de mais – foi fundo de mais. E transportou-nos com ele nesta viagem ao âmago da raça humana, ao local mais restrito e exclusivo do planeta (onde poucos cientistas podem entrar), através da porta de aço, como um cofre forte, até às Grutas Chauvet, em Chauvet-Pont-d’Arc, no sul de França, onde se encontram paredes tatuadas de arte rupestre com mais de 30 mil anos, quase o dobro de outra descoberta do género. Consideradas umas das maiores descobertas da História da Humanidade, as grutas mantiveram-se lacradas por um derrocada natural, desde há 20 mil anos, e só foram detectadas muito recentemente, nos anos 90. A respiração humana pode produzir fungos ou bolores que ameacem as pinturas, por isso as grutas têm sido resguardadas longe de olhares e respirares. Mas Herzog, que já foi a todo o lado, e tem esta apetência por territórios não desflorados, lá conseguiu uma autorização especial do governo francês, e entrou, com uma micro-equipa, num espaço de tempo limitado, com imensas condicionantes, quase sem iluminação nesta cápsula do tempo. Curiosamente, utiliza a tecnologia 3D para filmar (o documentário é sempre acompanhado pela sua presença e característica voz off) “uma gruta sem nada de especial, excepto ser tão bonita” e ter lá no fundo, muito longe da luz natural, as memórias cristalizadas dos primórdios da humanidade e da gestação da arte. Não deixa de ser curioso, que tivesse sido também um alemão, depois de Pina de Wim Wenders, a usar o já considerado obsoleto 3D (depois de Avatar, de Cameron, chegou-se ao ponto mais alto desta tecnologia), não enquanto efeito especial de entretenimento provocador de sustos, vertigens e sobressaltos, mas enquanto parte integrante da diegese. Em Pina, procurava-se a profundidade de campo, como se estivéssemos, a assistir de vivos olhos, às maravilhosas coreografias de Bausch. Em Herzog, este recurso algo transgressor é o de uma câmara táctil e pulsante, entramos de facto, com ele, naquela claustrofobia de estalagmites e estalactites, vamos descobrindo as formas dos fósseis calcificados dos animais da idade do gelo (Mamutes, cavalos, ursos, corujas, rinocerontes, hienas), antevemos a marca de um pé de criança e os rastos da pata de um lobo – será que caminhavam lado a lado ou um foi presa do outro? – e depois, lá no fundo da galeria, que tem mais ou menos a dimensão de um estádio de futebol, centenas de figuras de animais pintadas na rocha e o indescritivelmente belo, o famoso painel de cavalos, e a mulher com cabeça de touro. O 3D quase se torna também 4D porque Herzog vai-nos dando conta de um cheiro único, um bafio ancestral. Os Neandarthal que coexistiam à época não faziam pinturas simbólicas, estes homens, em especial um dos artistas que se identifica por ter um dedo mindinho torto, já pretendem comunicar com o futuro – embora não o consciencializem. É o princípio da alma do homem moderno. E é à luz bruxuleante das lanternas, com as figuras a menearem-se na rugosidade e na topografia irregular das paredes, no facto de muitos animais serem desenhados com várias patas, como se em andamento, que Herzog faz a sua reflexão. Quem sabe, se neste jogo entre a sombra e a luz das tochas, lhe surgisse também ao homem primitivo a ilusão do movimento que empresta vida ao inanimado. Ó irmãos Lumiére… Bem-vindos à primeira sala de cinema do mundo.