Admitimos que será desagradável iniciar uma reportagem com uma palavra que nos está a faltar. Há qualquer coisa de especial no ambiente, mas não queríamos repetir o adjectivo em assumida demasia, no super-lead acima. Podíamo-nos socorrer do inglês para dizer exquisite, mas o livro de estilo não permite, ou dessa misteriosa língua basca, cheia de “zês” e “kapas”, – berezia – mas ninguém, a não ser os próprios bascos, entenderiam. Por isso, resignamo-nos à redundância, e à “especialidade” de conversar com o realizador João Canijo, e as suas três actrizes Rita Blanco, Anabela Moreira e Cleia Almeida a propósito de Sangue do Meu Sangue (estreia-se dia 5, na versão curta e longa, em 15 salas portuguesas), naquela Bahía de La Concha, uma marginal pedonal à Copacabana, mas muito europeia, mais francesa do que espanhola, cheia de sol e maresia. Há qualquer coisa de… especial (que remédio, às vezes são mesmo as palavras que nos escolhem a nós). No impecável urbanismo, na arquitectura da cidade (uma das mais estudadas nas universidades a nível mundial), na clemência da temperatura das águas, aquecidas por uma corrente do golfo que passa por ali no Mar da Cantábria, no Rio Urumea sacudido pelas ondas, nas pessoas que passam, onde até os velhos parecem felizes.
Uma companhia de bailado faz o seu ensaio na areia, num palco delineado com redes de pescadores. João Canijo discorda, será antes uma aula de expressão corporal, “os bailarinos não têm corpos assim”, ele sabe que é especialista e professor, e não se deve discutir com especialistas – só com amadores. E entretanto passam surfistas, passam banhistas, passam cidadãos a fazer jogging, passam ciclistas, passam cinéfilos de todo o mundo deste festival quase sexagenário, passam pais que levam à frente carrinhos com bebés louros, passam imensos cães – aliás, a cidade deve ser o paraíso dos veterinários, há uma intensa ratio canina per capita, e, no entanto, nem um dejecto no chão. E, às tantas, passam também Aristóteles, Platão, Schopenhauer, Matisse, José Gil, Cassavets, Mike Leigh, e Steve Jones, o biólogo autor de Almost Like a Whale, uma reescrita da Origem das Espécies de Darwin, que explica geneticamente o que Freud explicava sexualmente… Todos eles convocados pelo realizador quando fala do seu filme, já selecionado para os festivais de San Sebastian, Toronto, Rio de Janeiro, Coreia, Miami (“parece que o critério é serem todos festivais à beira de água”, comenta o produtor Pedro Borges) e duplamente premiado na 59ª edição do festival espanhol, com o prémio da crítica internacional e uma menção honrosa da TVE (o que lhe permitirá passar na televisão estatal espanhola). O filme foi escolhido para a prestigiadíssima selecção oficial (a principal) de entre 2 165 candidatos. Cerca de 155 mil espectadores espalham-se todos os anos pelas 21 salas da cidade, pelas 631 sessões e duas centenas de actos paralelos, ao longo dos nove dias e noites – “a semana mais glamorosa da cidade”, dizem. E até há uma passadeira vermelha, mas nem esta consegue ser pindérica.
Nesta edição, incluiu-se uma secção nova, só com filmes sobre gastronomia, não fosse esta a cidade com maior concentração de restaurantes por metro quadrado classificados com estrelas Michelan. Na Câmara Municipal uma tela orgulhosa: “Iortu Dogu!”, ou seja “!Lo Hemos Conseguido”: a candidatura a capital europeia da cultura 2016.
Paredes meias
“Este é um filme de gajas”, diz João Canijo, como se com este comentário condensasse o seu filme todo. E de certo ponto de vista – o seu e o dos actores que com ele construíram o guião – até condensa. É uma história de “amor incondicional, depois do “desamor absoluto” dos filmes anteriores, das tragédias gregas passadas num bar de alterne (Noite Escura, 2004), em que uma Efigénia (Cleia Almeida) quase que é sacrificada pelo pai Agamémnon (Fernando Luís). Depois de uma Electra transmontana (Anabela Moreira), que mata a mãe, no seu pacto de vingança com o irmão Orestes (Mal Nascida, 2007). Sangue do Meu Sangue tem duas histórias paralelas, uma de sacrifício e incesto, outra de sacrifício e violação. Só que ambos os casos não se entrecruzam, nem se comunicam, apesar da promiscuidade da casa onde as personagens se acotovelam, em que as paredes são tão finas e vulneráveis como as vidas que elas abrigam. Porque, explica Canijo, “cada um de nós olha uma forma diferente, e ninguém está a ver a nuvem” (Schopenauer). E este espírito de sacrifício, este “amor incondicional”, intuitivo, sem reflexão nem hesitação teria muito mais valor se fosse passado num bairro periférico, onde as pessoas têm de se haver com a sobrevivência quotidiana e não lhes sobra tempo para outras elaborações. Por isso escolheu o Bairro Padre Cruz (sugestão da sua empregada doméstica), um bairro social do tempo de Salazar, perto da Pontinha. A câmara cedeu-lhe a casa do nº 21 do Rio Sabor, uma micro-moradia geminada, toda entaipada depois de ter servido de casa de chuto do neto de um dos iniciais moradores (cantoneiros que vieram do campo para construir as estradas para os outros). E as personagens do filme também fazem coisas para os outros. Ou cozinham para os outros (Rita Blanco), ou tratam dos cabelos e dos pés dos outros (Anabela Moreira), ou passam-lhes os códigos de barras das compras pela máquina registadora no Pingo Doce (Cleia Almeida). Como Canijo acredita que “as palavras faladas são sinais das expressões e dos afectos da alma” (Aristóteles) e que não se pode impor uma interpretação a um actor, tal como não se pode pedir a Maria João Pires que toque desta ou daquela maneira, todo este filme tem por base um processo longo, que durou dois anos de discussões, ensaios, improvisações com os actores, à maneira de Mike Leigh ou Cassavets (o processo pode ser visto no documentário Trabalho de Actor). Canijo não queria que os actores imitassem, queria que eles se deixassem contagiar pelo ambiente e pelas personagens. Cleia Almeida, grande revelação neste filme, foi mesmo trabalhar como caixa de supermercado e decorou os códigos do fiambre e queijo fresco (“só assim poderia adquirir aquele gesto de passar os rótulos”, conta. Rita Blanco trabalhou como cozinheira, ela que está talvez a atravessar a fase mais gloriosa da sua carreira, depois de ter filmado com Haneke – e foi em San Sebastian que se reencontrou com o actor espanhol com quem forma o casal de porteiros portugueses no filme do austríaco vencedor da Palma de Ouro em Cannes, no ano passado. Ela é uma actriz especial, talvez a única em Portugal capaz de assumir os registos da comédia e do drama. E Anabela Moreira, que, mais uma vez, foi mais longe neste processo de “contaminação”: “Eu pergunto-me sempre o que posso dar mais ao João, tenho esta necessidade de ir às últimas consequências”. Em Noite Escura, fazia parte do “coro” de alternadeiras e fez um “estágio” num bar de alterne. Em Mal Nascida, engordou 25 quilos, rapou o cabelo, deixou crescer pêlos, foi viver com uma família transmontana, conviveu com porcos – aliás, afeiçoou-se ao porquinho Moisés. Em Sangue do Meu Sangue ela, que vive no Restelo, habitou aquela casa sufocante, cheia de ecos da rabugem e dos escarros dos vizinhos. As pessoas do bairro nem acreditavam que ela era actriz (até em San Sebastian recebe chamadas de antigas “vizinhas”), foi ela quem trouxe muitos figurantes reais para dentro do enredo, convenceu o casal de velhotes rabugentos do lado a deixarem-se filmar, e até ajudou a limpar a casa arruinada de lixo, seringas e fezes. “Quando assisti pela primeira vez ao filme, senti logo aquele cheiro da casa”.
O que torna este filme especial, não é só a forma de representar “orgânica”, segundo o realizador, das actrizes que são capazes de passar dos registos mais dramáticos para as conversas mais banais que envolvem gino-canesten, sopa de nabiças “que faz bem ao ómega” ou implantes mamários de água salgada. Ou todo o método de construção que lhe subjaz – único em Portugal, e provavelmente irrepetível nos tempos mais próximos.
O que também torna Sangue do Meu Sangue especial são as opções plásticas e sonoras de João Canijo. Em muitas das cenas, há sempre uma parede, um obstáculo, um corrimão que se intromete. O que aparece primeiro plano não significa que seja a cena principal. Muitas vezes, duas cenas desenrolam-se em simultâneo no ecrã, e o espectador tem de optar por seguir uma ou outra. “Como na vida, tudo se passa ao mesmo tempo”, justifica. Ou como Matisse que tinha a ambição de que tudo o que colocasse num quadro tivesse o mesmo valor. E depois há a sonoplastia, perfeitamente notável. Há três, quatros “pistas” ligadas – “ou mais” sugere Canijo. As falas dos actores, os vizinhos do lado sempre sempre numa prolixidade de insultos, “carpideiros” do tempo em modo contínuo, “todo o santo dia”, o barulho do bairro, as tosses, as músicas dos bailaricos e o som da televisão ligada: telenovela brasileira na casa das mulheres, filmes pornográficos e futebol em casa do “mauzão” traficante (mais um desempenho fantástico de Nuno Lopes), e o noticiário (Cavaco Silva a falar de economia) nas casa dos ricos.
“Há muita verdade naquelas mulheres”, comenta João Canijo. “A falsidade está na maneira como as filmo”. João Canijo continua fascinado pelas mulheres (“regra geral, elas são muito melhores actrizes do que os homens”) E aqui vem a parte do cientista americano: “porque são geneticamente receptoras, têm maior capacidade de entrega”. No filme as mulheres são tratadas com muito mais benignidade: têm actos heróicos, de amor, de entrega, de sacrifício. Os homens ou são seres monstruosos, ou passivos ou ridículos, ou violam, humilham, roubam e enganam. “As mulheres têm o dom da dádiva, os homens o dom de tirar”, responde Canijo à pergunta da VISÃO, na conferência de impresa, após a projecção numa sala com mais de mil lugares praticamente cheia de espanhóis que se suspenderam no drama desta família, arquejaram colectivamente num momento crucial do filme e no final comentam uns com os outros: “mui fuerte”. “As mulheres são muito mais interessantes do que os homens, já cheguei a essa conclusão. São seres intrigantes, nunca sei do que elas gostam, fazem-me a vida negra, têm mudanças de humor repentino uma vez por mês, o que as transforma numa espécie de monstros devoradores…”. Ainda continua intrigado por este núcleo de actrizes, Rita, Anabela e Cleia – afinal foi ele que as “descobriu”. Foi professor de Anabela, encontrou-se com Cleia num casting e Rita conheceu-a tinha ela 18 anos, era aluna do conservatório, e ele assistente de realização de um filme manhoso. “Apareceu-me um bichinho com o cabelo todo para a frente, mas depois pedi-lhe para dizer o texto e… ah!”. Já aboliu a caracterização, a maquilhagem, agora no seu próximo filme irá eliminar os décors: “Só ‘gajedo'”: Um foot-movie, nove mulheres, entre elas as três actrizes, numa peregrinação de Trás-os-montes a Fátima.