“JL” – “Casa de Lava” é um filme a cores… Ou a tons.
P.H. – Eu diria que é quase um filme a preto e branco. São histórias de brancos e pretos e, de repente, há uma fusão das duas coisas, que podem ser as sombras. É um trabalho interessante do Pedro [Costa]. É um filme profundamente português, porque é a história do colonialismo, das diferenças culturais. Da mesma cultura saíram diferentes culturas, diversas maneiras de sentir as coisas. E Cabo Verde é outro mundo. Não estamos na Europa, estamos em África. Uma África um bocadinho europeia. São ilhas. Estive lá quase três meses e só filmei catorze dias. Deu para aprender crioulo com as pessoas. E deixei-me ir a tal ponto que absorvi um certo espírito. As pessoas é que estão por detrás do meu trabalho. Não propriamente eu.
“JL” – Tu e o Pedro Costa são frutos da mesma árvore genealógica do cinema português. Paulo Rocha. Aliás, imagino-te sempre a fazer “Verdes Anos”. Num anacronismo: o Pedro Hestnes de hoje ao lado da Isabel Ruth de então.
P.H. – É um filme de que eu gosto mesmo muito. E é engraçado. Vi-o depois de fazer “O Sangue”. Se calhar é o tal espírito que paira no ar.
“JL” – Como os textos do Zé Gomes Ferreira que lês agora…
P.H. – Exacto. Essa angústia de viver, os desejos irrealizáveis são comuns às pessoas que
“JL” – A propósito de “Verdes Anos”. Nasceste em Lisboa e…
P.H. – Nasci em Lisboa e com um mês fui para os Estados Unidos, de avião. Estive lá até aos 2 anos e depois andei sempre a saltar de um lado para o outro, de escola
“JL” – Mas viveste em Paris algum tempo.
P.H. – Entre 1971 e 1973, era muito puto ainda. Nasci em 1962. Uma boa época para nascer.
“JL” – Mas voltaste a Paris para tentar belas-artes?
P.H. – Sim, aí pelos 17 anos estive lá, em belas-artes.
“JL” – Desenhas, não é?
P.H. – Tento fazer banda desenhada. Publiquei umas coisas nuns jornais. E na revista “Kapa” cheguei a publicar uma banda desenhada
sobre a Guerra do Golfo. Sobre o espetáculo mediático. Foi um bocado censurada, acho eu. Disseram-me, na altura, que se tivessem tido consciência do que era aquilo não tinham publicado. Eu fico muito contente com essas coisas. É um bocado terrorista.
“JL” – Tu gostas desse teu lado malcomportado.
P.H. – Não é malcomportado. É fornecer outro tipo de referências às pessoas. Tem sempre que haver contrapontos para as pessoas poderem pensar e porem em causa situações. Mesmo situações políticas da vida actual.
“JL” – Que te atrai na banda desenhada?
P.H. – Poder criar tudo, sem limitações narrativas. O que eu posso transmitir a partir de uma imagem pode ser muito forte. A BD não é uma imagem real.
“JL” – Era giro publicar um desenho teu
aqui no jornal.
P.H. – Se calhar era melhor do que publicar a minha fotografia. Ou publicar os meus pés em vez da minha cara.
“JL” – Ou as mãos em vez dos pés. Como no “Pickpocket”, do Bresson. Imagino-te, aliás, um bocado no papel do carteirista…
P.H. – Tarde de mais. No Bresson, as pessoas estão lá. Pelo olhar. É muito forte. Ele chega a tal ponto no trabalho com o actor, que é violentíssimo. O actor dá para além dele próprio, em estado de contenção. O que é óptimo. Mas sobre o cinema de Bresson não digo nada. É para se sentir, não para comentar. De resto, ele não aparece por acaso. E um poeta francês. E se hoje não filma, se calhar é porque já não há mais nada para filmar. Ou se calhar é porque não lhe dão oportunidades.
“JL” – É mais isso, mas adiante. Olha, tu chegaste a tocar num bar.
P.H. – Era disk-jockey. Já tive um grupo, sim. Tocava violino. Muito mal… Era engraçado como eu utilizava o violino – mais para criar ambientes de terror do que para ser um melódico. Foi uma experiência passageira com uns amigos. Fizemos umas gravações piratas. Não chegámos a vender. As pessoas não iam gostar. Nós gostávamos.
“JL” – Como te sentes como actor, neste país? Um actor nada mediático…
P.H. – Não é esse o meu objectivo. Aliás, fico muito triste quando vejo actores que podiam ter uma carreira diferente e vemo-los aparecer na televisão a fazer concursos. É lamentável. O problema não será dos actores. Ganham tão mal no teatro (no cinema ganham um bocadinho melhor), que, se calhar, não têm outras opções senão venderem-se assim. Mas ser actor não é isso. É-se actor porque se tem alguma coisa a dizer, alguma coisa a comunicar. Um actor deve criar coisas inteligentes, para as pessoas pensarem. Qualquer coisa que tenha a ver com a inteligência, e não com a não inteligência. Nem com a venda de produtos, como acontece cá. Lá fora não tanto, o ator tem ou tro estatuto, mais compensações.
“JL” – Aqui um actor não é muito considerado?
P.H. – Nem um actor nem ninguém. Não sei porquê. Aliás, estou a pensar sair deste país e ir estudar lá para fora, para a Europa. Ainda não sei para onde. Estou a informar-me sobre algumas escolas de cinema.
“JL” – Como actor ou como realizador?
P.H. – Talvez como realizador. Mas não é certo, pode acontecer. Neste momento estou quase há um ano desempregado. O último filme que fiz foi “Três Palmeiras”.
“JL” – Outro excelente papel o teu. Estou a lembrar-me de uma cena fabulosa entre ti e a Isabel de Castro.
P.H. – Admiro imenso a Isabel. Como atriz e como pessoa. Nunca se vendeu, nunca entrou em esquemas. Não é vedeta. E sobretudo verdadeira.
“JL” – Ao longo de “Três Palmeiras” tens um confronto constante com outra grande actriz, a Teresa Roby…
P.H. – Eu improvisei muito esse trabalho. Estou completamente a nu. Não tenho bengala nenhuma. Nos outros também não. Mas, por exemplo, em “Casa de Lava” trabalhei imenso para ter um tom, o tom daqueles gajos, falar crioulo. Em “Três Palmeiras” é um trabalho espontâneo.
“JL” – Desempregado há um ano, como te aguentas?
P.H. – Com dinheiro que ganhei. E tenho dívidas. É difícil um actor viver. Mas não sou obrigado a fazer coisas que não gosto. Nunca fui. Quando as pessoas entram nesse processo, é irreversível – “perdido por cem, perdido por mil”, como se diz. Prefiro estar mal, não ter tanto dinheiro para viver, mas estar bem comigo próprio, a participar em coisas com que não estou de acordo e depois ficar mal comigo.
“JL” – Já reparaste que todo o teu cinema foi feito sob o cavaquismo? E não são filmes de que te envergonhes.
P.H. – Não, não me envergonho, caso contrário não os te ria feito. Mas não sei se o Cavaco os viu.
“JL” – Que leitura tens disto? Entraste só numa dúzia de filmes, ou, mesmo assim, entraste numa dúzia?
P.H. – Por sorte, entrei numa dúzia. Catorze, mais concretamente.
“JL” – A sorte merece-se.
P.H. – Sim. Não é por acaso que me convidam para um certo tipo de cinema. Existem actores técnicos que são sempre bons, mas não sei se isso será positivo ou não. Estão sempre dentro das normas, dos códigos. Não rompem com isso. São um bocado cyborg. Comandados. Ora todos os actores deviam ser poetas. Quando não são, são técnicos.