Há uma expressão muito culinária (e extremamente destituída de poesia) que diz que não se fazem omeletas sem ovos. Para o realizador turco, Semih Kaplanoglu, que ganhou o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, parece que não se faz poesia sem Mel, Leite e Ovos – os títulos da sua trilogia, em flashback. Mel (o filme vencedor que se estreia hoje, 24) é o terceiro deste tríptico poético, que, na verdade, é o primeiro. Semih acabou pelo princípio, a sua história de Yusuf, o homem poeta, e vai agora, em retrospetiva, até à sua infância. Aquela fase em que ainda tudo é inicial, inteiro e limpo. E a poesia parece fazer ligação direta com a alma, através do olhar de uma criança. Yusuf tem uma relação difícil com as palavras escritas, nas aulas gagueja, quando lê em voz alta – tanto ou mais embaraçoso numa sala de aula do que aos reais microfones. Mas esse retraimento verbal compensa-o com a sua imensa capacidade de olhar o menino deste lugar remoto, numa aldeia da Turquia rural, na província de Rize (costa do mar Negro). Que é, como se sabe, a matéria-prima mais primordial de um poeta em construção. E todo o filme é-nos transmitido através daquilo a que o próprio realizador chama, paradoxalmente, “realismo espiritual”. Sempre na perspetiva de quem vê o mundo a um metro do chão. E é nesta perpendicularidade, entre a verticalidade das árvores enormes da floresta onde o pai assaltava colmeias, e o olhar horizontal no miúdo, que se encontra um ponto qualquer onde se formam as “origens da alma”, na palavras do realizador. Ou se vai incubando, fermentado, acumulando, cozinhando com leite, mel e ovos, o armazenamento vocabular e sensorial de um poeta que ainda não sabe que o será porque ele apenas é um poeta em construção. Assim como todas as crianças nos seus dramas de pequena escala, os insetos que observam, os embaraços na escola, o confronto com os colegas, as náuseas que lhe provocam o leite, a admiração pelo pai recoletor de mel que sobe as altitudes das árvores, e a ele, só a ele, lhe fala baixinho numa cumplicidade terna – porque se um miúdo é filho único um pai também é pai único – e, então, temos um pequeno contentor humano de emoções, a aprender as coisas dos adultos: a humilhação, a vergonha, o riso dos outros, a perda, os equívocos (os equívocos são tramados), e os mistérios da vida que são enigmas muito mais enigmáticos, fascinantes ou dolorosos para quem os inaugura.
Um filme de pausas
E depois há o silêncio, puro e absolutamente encantador, que sempre se diz que estimula a capacidade de olhar, reparar e ver. Mas, curiosamente, também de ouvir. E falar de sons, como o zumbido das abelhas, o dardejar de asas do falcão, o passo indolente da mula, as cordas que esticam e se retesam para a escalada das árvores, o rumorejo do rio, do vento nas árvores, num filme que enfatiza formalmente o silêncio (o realizador não usa banda sonora extradiegética) não é de todo um paradoxo. Porque a própria ausência de ruído enfatiza os pequenos rumores, como se lhes ampliasse os decibéis, ressalta-lhes o protagonismo, e onde há pouco verbo resta-nos muito espaço cerebral para dedicar à contemplação desta natureza colonizada ainda pelos primordiais ruídos.
O realizador encontrou este pequeno ator (Boras Altas, de 7 anos) enquanto este passava alegremente de bicicleta. A personalidade do miúdo era diametralmente oposta à do contemplativo, tímido e contido personagem, por isso, conta Semih, ele teve de fazer um trabalho minucioso com o miúdo. Ainda por cima não tem filhos, não sabe lidar com crianças, mas teve uma ajuda de um “treinador [sic] de atores infantis”. Diz-se que a palavra pode ter a valência de mil imagens e não o contrário, e produzir um efeito impactante, mas a pausa – no momento certo, na hora e no local certos produz um efeito ainda mais estrepitante. Por isso, este é um filme de pausas cheias de poesia lá dentro. E a poesia, como se sabe, é feita da mesma matéria com que se constroem os sonhos. E não por acaso o filme acaba com o miúdo a dormir, no meio da imensa e misteriosa floresta, cheio de “brancos pavores”, tão líquidos como o rio que corre ali perto. E cita-se uma frase maravilhosa em latim, que condensa todo o filme – soa muito melhor em latim, mas a tradução impõe-se: Altissima quaeque flumina minimo sono labi, os rios mais profundos correm sempre com menos ruído.