Os bairros normais não têm nada de especial. E este em particular, o Bairro Padre Cruz, nas imediações da Pontinha, que está a infernizar a cabeça do taxista, impacientado com as indicações contraditórias do GPS, os sinais de sentido proibido e as contribuições roufenhas dos colegas pela rádio da central. Um bairro suburbano, com traçado quadriculado, cujas ruas todas têm nome de rio. Só que é como em tudo na vida: uns são rios, outros são afluentes. Haveriam de concluir os taxistas, que sempre exibem uma peculiar habilidade para extrair sentidos filosóficos das contingências rodoviárias. A rua do Rio Sabor não tem acesso por carro, há que navegar primeiro pela rua do Rio Zêzere e encontrar o primeiro riacho à direita. Depois é arregaçar as calças e seguir a pé, que parecem mansas as águas e baixo o caudal.
Um bairro aparentemente tranquilo, apesar do sobressalto dos ladrares de cães que saltam atrás de cada portão à passagem dos transeuntes. Construído nos anos 50 pelo Salazarismo para acolher os cantoneiros da câmara, vindos lá da província para construir a cidade dos outros. Por isso, tem aquela pequenez de pobreza ordeira e resignada, como lhe competia. Casinhas brancas alinhadas, todas iguais, cada qual com o seu quintalinho, para onde os residente pudessem importar o seu quinhão de ruralidade, dar umas sacholadas, plantar uma horta, instalar um assador de sardinhas… Se calhar os nomes das ruas, que à primeira vista, até traziam um frescor fluvial, quase poético, como “o rio que corre pela minha aldeia” de Fernando Pessoa, tinham mais a ver com aquela obsessão didática do Estado Novo de pôr toda a população escolar a debitar nomes de estações, apeadeiros e rios. Seja como for, este não é o “cliché do subúrbio, com pessoas realojadas em altura. Este é mais do género do bairro operário, de tijolos, inglês”, explica o realizador João Canijo que durante meses andou por aqueles rios acima, a indagar a vizinhança, a filmar-lhes a casa, a falar com aquela gente, para enfim se instalar aí, com a sua equipa, e criar o décor principal do seu próximo filme Sangue do meu Sangue (em fase de montagem). Mais precisamente na casa de esquina da Rua do Rio Sabor.
Em tempos a moradia de esquina pertenceu a um realojado da primeira geração dos tempos em que aquilo era uma espécie de aldeia transladada às portas da cidade. Depois morreu o avô, passou a habitação para o neto toxicodependente. Depois tornou-se uma casa de chuto. Depois veio a câmara pôr cobro ao pandemónio e emparedou portas e janelas. Agora, cedeu-a à equipa de filmagens que durante três meses andou por ali, a acotovelar-se (literalmente) em divisões de 2X2 metros. À Dona Manuela, paredes meias, poderia ter-lhe calhado uma vizinhança mais pacata. Estes são igualmente noctívagos, mas, assim como assim, menos desordeiros que os anteriores ocupantes. Sucedem-se as rodagens pela noite fora, os gritos de silêncio do assistente de realização, o vai-e-vem de câmaras e cabos e monitores, Canijo sempre a admoestar Rita Blanco quando, no intervalo das filmagens, se põe a cantar ou a praguejar alto por causa das sandálias de plástico que lhe complicam a escalada dos degraus: “Ó Rita está calada, olha os vizinhos!” Enfim, nada de extravagante para um bairro, onde volta e meia há sarafuscas, rusgas policiais, facadas noticiadas nos telejornais, vinganças entre gangues, relações tensas entre brancos, pretos e ciganos, bailaricos ruidosos e uma roulotte de cachorros onde a equipa se reúne para tomar café e dançar com os autóctones. É mesmo assim o bairro. Tem dias. Tem noites.
Improvavelmente ser feliz
Mas quem disse que este era um bairro normal? E se fosse normal, o que andaria por aqui a fazer João Canijo? Desde Sapatos Pretos (1998) – uma espécie de Carteiro Toca sempre Duas vezes, em versão alentejana, e que o realizador classifica como o “filme da adolescência – que ele anda a explorar os subsolos da nossa portugalidade. Acha o país medonho, uma piolheira, há 10 anos que já só lê o El País, “mas sou português, não posso fugir a isto, é o destino”. Desde esse filme que descobriu o país real e se dedica a ma espécie de espeleologia cinematográfica. O Alentejo e aquela classe média decadente já era bastante profundo. A emigração dilacerada em França também, em Ganhar a Vida (2000). Em Noite Escura (2004), então, descemos mesmo de cota, até às catacumbas mais sórdidas da nossa sociedade, em bares de alterne de berma de estrada. Mal Nascida (2007) era, todo o filme, uma gruta. Uma furna de granito e alumínio, numa aldeia transmontana com lama, bois e um café sempre com a televisão ligada nos concursos do Malato, decorada com marcas de cerveja, naperons e santinhos. Fantasia Lusitana, o documentário sobre os delírios da propaganda do Estado novo, também desce aos abismos mais serôdios, cheios de musgos, bolores e outras viscosidades do salazarismo, no tempo da Segunda Guerra Mundial. E em Sangue do Meu Sangue, também se vive, entre o kitsh e o inestético, os apertos e o sufoco da degradação. As personagens são todas elas traças à volta de uma luz. Não acabam bem.
Sangue do meu Sangue não é a parte intermédia da tragédia grega, que Canijo recriou. Primeiro, no bar de alterne (Noite Escura) em que uma Ifigénia do século XXI é sacrificada pelo pai Agnémnon. E retomada, depois em Mal Nascida, com Electra, a não querer esquecer, a não se resignar, já a alimentar-se do plano de matar a mãe (Clitmenestra), através do pacto com o irmão Orestes. Ficou por fazer, por razões orçamentais, explica, a parte do meio da trilogia, em que uma mãe destroçada pelo sacríficio da filha Ifigénia, se vinga do marido com a ajuda do amante. Não há nada de tragédia grega no novo filme, garante Canijo e, no entanto, há sempre qualquer coisa. Também em Sangue do Meu Sangue há sacrifício, pathos e reconhecimento. Também, paira sempre em todos os três filmes uma história de incesto. E há outro denominador comum: Fernando Luís – em todos eles faz de “dono de um estabelecimento”. “Não sei porquê, ri-se Canijo, “calhou… Acho que é um papel que lhe vai bem”.
Este novo filme nasce, “por oposição a uma história de desamor absoluto, à incapacidade de demonstrar o amor (Mal Nascida). Apeteceu-me fazer um filme sobre o amor incondicional”. De uma mãe (Rita Blanco) por uma filha (Cleia Almeida). De uma tia (Anabela Moreira) por um sobrinho delinquente (Rafael Morais). De uma mulher (Beatriz Batarda) pelo marido (Marcello Urgeghe). Aqui sim, diz, há perdão e redenção. Originalmente, o guião estava previsto para um díptico, Sangue do Meu Sangue, Sangue da Minha Alma, dois filmes, que, outra vez por razões orçamentais, ficaram condensados num só. E os enredos vão-se posicionando, ao longo do filme, nas casas do centro do xadrez.
Quase como uma baleia
Pensou neste bairro pelo universalismo que ele encerra: “Metade da população mundial vive em subúrbios das grandes metrópoles. Em 2050 serão 90 por cento”. A história podia passar-se noutro tipo de bairro social, talvez num até mais duro, clandestino mais interessou-lhe mais a dimensão de convencionalidade do que a idiossincrasia. Achou “que uma história de amor incondicional seria muito mais interessante num sítio onde as pessoas têm lutar pela sobrevivência, onde não há grande disponibilidade para reflexões e elaborações sobre o que é o amor”. Só aqui, onde as pessoas se ocupam a limpar as casas dos outros, ou a lavar os cabelos dos outros, ou a passar as compras dos outros pelos leitores de códigos de barras “o amor pode ser posto completamente à prova”. Por isso, andam estas mulheres, neste bairro de rios, aí a empurrar remos, na obscuridade das galés, sabe-se lá para chegar onde. Pelo menos, tentam manter-se à superfície.
E, mais uma vez nos filmes de Canijo, são as mulheres que empurram o barco. São sempre histórias de mulheres, os homens gravitam por ali, empecilham, condicionam, mas são elas, que, aqui neste filme levam nomes como Márcia, Ivete e Cláudia Filipa, colhem as tempestades, depois de semeados os ventos. “Porque as mulheres são muito mais interessantes, muito mais fortes e dão personagens melhores. As atrizes também são mais interessantes que os atores”. Não sabe porquê, mas geralmente escolhe-as para protagonistas. Há tempos leu, Almost Like a Whale, de Steve Jones, “uma reescrita da Origem das Espécies de Darwin, que explica de forma biológica o que Freud explicava sexualmente. A fêmea é biologicamente recetiva, logo mais disponível, mais vulnerável, mais aberta… Esta pode ser uma das explicações para elas serem melhores atrizes, a disponibilidade de se exporem, de se entregarem…”. No filme, a filha de Márcia (Rita Blanco) tem um caso com o próprio pai, sem o saber. Márcia faz tudo para o evitar, “é até capaz de matar, só não faz uma coisa: revelar o incesto à filha – é o amor incondicional. A tia Ivete (Anabela Moreira) tem uma adoração, muito física e maternal ao mesmo tempo, pelo sobrinho e sacrifica-se em seu lugar, vai presa no lugar deste. quando este se envolve em esquemas de tráfico – é outra vez o amor incondicional…”.
Porque “essa história da certeza de se ter o amor de uma mulher é coisa de gajos”. Canijo lembra o capítulo XXXII do Dom Quixote, em que se narra a novela do “Curioso Impertinente” que quer pôr à prova a fidelidade e o amor da mulher e “aquilo acaba mal”: “É impossível ter a certeza do amor, ou pretender tê-la. É uma impertinência. É fazer a pergunta que não se pode fazer”.
Aprender a nadar
Vai adiantada a noite. A equipa sobrelota o pátio, amontoa-se na minúscula cozinha, e numa sala sombria e esconsa que mais parece o hall de entrada, enquanto os técnicos posicionam as câmaras no andar de cima. Tropeça-se no equipamento, todos os movimentos de um atrapalham o outro. A decoração interior foi reconstituída à imagem de outras casas que a equipa andou bisbilhotar pelo bairro. Os móveis de contraplacado, os biblots chineses, os cãezinhos em miniatura, fotografias junto ao contador na parede verde clarinho, a última ceia à entrada da cozinha e uma tapeçaria de feira com um jaguar… A televisão há de estar sempre ligada no Mundial ou na novela. Canijo não quer caricatura, quer realismo. Não há maquilhadora nem cabeleireira na equipa. Aliás, a ideia é mais “desmaquilhagem e despenteagem”. As atrizes tratam disso, elas próprias. Agora cruzam-se todas num cubículo da casa de banho, a mãe discute com a filha acabada de sair do chuveiro: “A vida não é feita de hotéis finos, filha”. A Tia, vai fazer uma mamografia, e acaba de puxar um autoclismo daqueles à antiga, que produz uns roncos e uma sucessão de pingos que deixam fascinados os operadores de som.
Há dois anos, ao longo de quatro fases de três meses, que elas trabalham com o realizador na construção das personagens e do próprio guião. Canijo conseguiu algo muito raro em Portugal, “porque os produtores consideram que com estes ensaios prévios perdem dinheiro. É ao contrário, depois compensa-se em tempo de rodagem”. As atrizes mais do que vestir as personagens, trazem-nas presas à pele. É algo de parecido com os longos períodos que o realizador Mike Leigh costuma passar com os seus atores (quase sempre os mesmos) antes da rodagem. Para se impregnarem de realidade, Cleia foi caixa de supermercado no Pingo Doce. Rafael resolveu fazer umas trancinhas-afro como alguns habitantes do bairro. Rita pintou o cabelo de ruivo e trabalhou na cozinha de restaurantes e Anabela num salão de cabeleireiro. “Filmámos no verdadeiro CCB”, comenta Canijo, “no Centro Comercial Babilónia, da Amadora, que só tem cabeleireiros, lojas de telemóveis, de roupa chinesa e um Pingo Doce”. Anabela foi mais longe: ela que mora no Restelo, mudou-se para a casa do Rio Sabor. Ficou a dormir num quarto, onde nem tem espaço para arrumar a roupa. Não lhe custou por aí além, com exceção “da água amarelada dos canos que lhe deixa manchas na pele”. Nada que se compare, com a verdadeira metamorfose à Robert De Niro, a que se submeteu em Mal Nascida. A atriz, 34 anos, que já foi modelo e trabalhou pela primeira vez com Canijo, como uma alternadeira secundária, em Noite Escura, engordou 25 quilos, rapou o cabelo, deixou crescer pêlos por todo lado, conviveu com porcos e galinhas, apanhou aquela rudeza de bicho do mato de Electra transmontana. Para Canijo “é um contra-senso dirigir atores”. Quando eles lhe perguntam como devem fazer, ele responde: “Tu é que és pago para isso”. E cita Aristóteles: “As palavras faladas são símbolos das afeições da alma, e as palavras escritas símbolos das palavras faladas”. “Faz algum sentido algum maestro impor uma interpretação a Maria joão Pires? É como nos atores, a interpretação será sempre deles. Nesta fase, eu quase nem precisava de cá estar”. Mas está, mesmo no meio deles, atrás de portas, nos ângulos improváveis que a câmara não apanha. Quase sempre deixa a cadeira do realizador, frente ao monitor, vazia. Claro que quando Canijo os vê a afundar, ou a deixarem-se levar pelas correntes dos tais rios “a malta lança-lhes uma boia”.