No primeiro 1º de Maio, na Alameda Afonso Henriques, em Lisboa, a concentração mais euforizante de sempre do país, por entre a febre e a ressaca, por entre as bandeiras improvisadas e os slogans espontâneos, por entre as imagens de um futuro que se anunciava inicial e limpo, via-se em pano de fundo, na fachada do antigo Cinema Império, um cartaz do Couraçado Potemkin, de 1925. Foram precisos 49 anos para o filme mais celebrado do genial Sergei Eisenstein cá chegar. Nas ruas a multidão colorida gritava pelo MFA e pelo “Povo é quem mais ordena”, lá dentro no escuro, marinheiros mudos revoltavam-se contra a tirania dos oficiais, enquanto outra multidão a preto e branco se precipitava vertiginosamente pela escadaria de Odessa.
Cá fora o povo sem fôlego de tanta emoção e clamor, lá dentro o espectador também sem fôlego a assistir a uma outra gente encurralada e a um carrinho de bebé a cair descontroladamente por uns degraus. A acompanhar esta projecção, Jaime, o poético e inigualável documentário de António Reis.
A sede de uma espera só se estanca na torrente, cantava Sérgio Godinho mais ou menos por esta altura, e até Setembro de 1976, estrearam-se comercialmente em Portugal cerca de mil filmes proibidos, ou gravemente amputados durante a censura. Em pleno PREC, estreou-se por ordem cronológica o Bonjour Tristesse, de Otto Preminger (1958), o Chinatown, de Polanski (1974), o Robin Hood, de Wolfgang Reitherman (1973), Sexo Louco, de Dino Risi (1973), Satyricon, de Fellini (1969), Maridos, de John Cassavetes (1970), O crime no Médio Oriente, de Sidney Lumet (1974), O silêncio, de Bergman (1963), A Primeira Página, de Billy Wilder (1974), Jules et Jim, de Truffaut (1962), Emmanuelle, de Just Jaeckin (1974), Estado de Sítio, de Cista-Gravas (1973), Teorema, de Pasolini (1968), O Herói do Ano 2000, de Woody Allen (1973), Serpico, de Sidney Lumet (1973), Sopro no Coração, de Louis Malle (1971), A Fúria do Dragão, de Bruce Lee (1972), Stavisky, de Alain Resnais (1974), A Viagem, de Vittorio di Sica, Outubro, de Einsenstein (1928), entre tantos outros… O público depressa se descobriu em síndroma de privação – e tantos ainda nem se haviam dado conta de como o cinema lhe tinha sido negado. Foram tempos de cicatrização e de reajustamentos.
O conceito de multiplex estava a chegar devagarinho e os cinemas chamavam-se Império, Estúdio, Politeama, Eden, Vox, Mundial, Castil, Quarteto, Caleidoscópio, Monumental, Tivoli, Avis, Apolo 70, Satélite, Alvalade, Londres, Condes, Roxy, Olímpia… Mas nesta sociedade em estado de ebulição nem sempre o público acorria às salas pela excelência cinematográfica ou pela novidade, antes mais atraído pelas cenas mais desprovidas de vestuário – o que, na verdade, também era uma novidade. Ainda que o Couraçado Poutemkine fosse um clássico mundial, foram os filmes eróticos ou mesmo pornográficos que tomaram de assalto a atenção do público português. O Último Tango em Paris foi o título que mais furor fez, mas salienta Maria João Madeira, numa antologia da Cinemateca dedicada ao Cinema de Abril, “façamos justiça e lembremos como a censura se ocupava com obras que mereciam atenção. Por exemplo reprovava sistematicamente fotografias de Rita Hayworth e de Elvis Presley. Além dos cortes que impunha aos filmes, dava-se ao trabalho de pintar blusas sobre fotografias que mostravam as costas de uma mulher nua”. No ano a seguir, escrever-se-ia no preâmbulo do Decreto-lei que punha regras à exibição de pornografia. “Após quase meio século da mistificação do sexo e de total ausência de educação sexual, é compreensível a curiosidade que caracterizou a procura de publicações, exibições fílmicas e, em geral, de instrumentos de expressão e comunicação versando temas eróticos. Durante séculos, foram as barreiras e os tabus erguidos em torno do sexo, e dos seus problemas, responsáveis por frustrações, taras e infelicidades sem conta. Nessa medida não terá deixado de desempenhar um papel socialmente terapêutico e profiláctico esta espécie de tratamento de choque”.
“Começou-se por festejar o fim da censura, a possibilidade de filmar e na rua”, continua Maria João Madeira. Logo que se soube que a revolução estava nas ruas, não houve câmara, desde 8mm até 35 que não registasse o momento histórico. Entre o dia 25 de Abril e o 1º de Maio, viveu-se uma espécie de estado de graça. Rapidamente a efervescência política contaminou a comunidade cinematográfica, terminou o período de comunhão entre os criadores e pensadores de cinema, sucederam-se os episódios, as contendas, as polémicas, os desentendimentos. Aliás, os “anos revolucionários” foram prolíficos em textos que dividiam, reinavam mas também reflectiam sobre o que era e o que devia ser o cinema, como se aquela era marcasse o real princípio do resto da história cinematográfica de um país. Depois de um estado de coma profundo, ainda só meio ligado às máquinas pelo Cinema Novo, uma décadas atrás. Foi um período marcado por comunicados, contra-comunicados, pelos manifestos, pelas tensões, pelas estratégias, pelas tomadas de posição dos agrupamentos ou por aqueles que se deixavam de fora – o clima era o de começar de novo. Inaugurar uma etapa, como quem inicia uma fita de celulóide virgem.
Chegou-se a formar uma comissão de cineastas anti-fascistas, a socialização do cinema estava em curso, aos discursos anti-imperialistas e colectivistas sucediam-se tomadas de posição mais moderadas. Formaram-se comitivas, para se extinguirem logo a seguir. Geram-se conflitos, cisões, atinge-se um ponto de ruptura em 75, quando se tenta estabelecer um novo regime jurídico para o cinema. Estala a discussão pública. Enquanto uns defendem a “cultura popular”, outros fazem a apologia da “cultura revolucionária”. E estas palavras do tempo eram debatidas na RTP e no Expresso. Discutia-se a forma de atribuição de subsídios públicos, mas também questões menos pragmáticas de saber se o cinema é ou não é uma arma: eis a questão. Ao longo do ano, realizam-se mostras de cinema cubano e romeno, desconhecido até então em Portugal, editam-se uma série de revistas de cinema e cooperativas cinematográficas. O célebre realizador e montador Jean-Marie Straub esteve em Portugal para discutir os seus filmes, no Festival da Figueira da Foz, figuras de renome internacional apresentavam a sua obra. Estava definitivamente enterrado “o cinema do avozinho”.
No comunicado do Ministério da Comunicação de 1975 lia-se: “O actual momento revolucionário não pode prescindir de um cinema português que procure responder às exigências culturais das classes trabalhadoras empenhadas na edificação de uma sociedade socialista”. Os cineastas abrem hostilidades, divergem, registam-se greves. Em Julho de 1975, Manoel de Oliveira dizia ao Jornal Novo: “Nós realizadores pertencemos a uma elite (diga-se quer convenha quer não) e uma elite que não é realmente representativa das massas populares nem tem mandato delas”. Acabou por realizar, como sempre imune ao ambiente que o rodeava, Benilde ou a Jovem Mãe, de José Régio.
Bastante mais coerente com a época foi a estreia de Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, com argumento de Luíza Neto Jorge e Nuno Júdice, que segundo Benard da Costa foi um “filme-prosa ou um filme-ensaio, em que o jogo intelectual se sobrepõe ao emocional, mas em que os códigos são revisitados com uma acutilância cultural muito rara no cinema português”. A primeira obra tardia do realizador (tinha 39 anos) é considerado talvez o melhor filme de ficção sobre a revolução, embora não contenha quaisquer imagens do 25 de Abril: é uma espécie de retrato do salazarismo visto do interior doméstico de uma família. Segundo Tiago Baptista, em A Invenção do Cinema Português, “não é um filme denúncia do salazarismo – como tantos o foram no PREC – mas sim uma análise dos fundamentos do poder do regime e das razões da sua longevidade”. O carácter ensaístico do filme (mostrando o modo como Salazar se imiscuiu no senso comum e no quotidiano doméstico dos portugueses) é-nos dado através do anti-naturalismo dos diálogos e do artificialismo dos cenários. “Da tua morte, é da tua morte que se trata: assim começa o filme”.
Em os Demónios de Alcácer Quibir, de Fonseca e Costa, gira em torno das inesquecíveis canções de Sérgio Godinho, que faz parte de uma grupo de saltimbancos que ganha a vida encenando fábulas sobre a opressão dos trabalhadores.
Outro filme que marcou o Verão Quente, ainda mais incatalogável foi Que Farei Eu com Esta Espada’, de João César Monteiro, que já antes declarava ao Cinéfilo: “Agora e na hora do antifascismo, resta-me desejar a todos os meus ilustres camaradas -pavões de ofício cinematográfico, de quem sempre disse horrores, não por empenho missionário mas por mero desabafo de rotina, que consigam com a queda do miserável regime que os vitimou, expulsar a profunda imbecilidade dos filmes que fizeram e reencontrar, enfim, aquilo que, durante a asfixiante opressão, nunca deram mostras de possuir: dois dedos de imaginação, uma pitada de inteligência, um nadinha de subtileza e delírio, uma nesga de rigor poético”. E este comentário é todo ele uma declaração de intenções daquilo que viria a se a sua obra futura. Para já, em 1975 aparece com este documentário tão militante quanto híbrido, tão sarcástico quanto delirante, em que um porta-aviões, supostamente da Nato, prestes a desembarcar no Tejo, traz consigo a peste, Nosferatu, carregando o seu caixão, acompanhado do seu exército de ratos. O terreno é propício à invasão: “Sem aumento de produção, os preços dos alimentos sobem e a população empobrece. A única actividade estimulada é a prostituição”. No meio de tudo isto, há a Madame Butterfly, uma guerreira lusitana (Margarida Gil) que pronuncia a frase “que farei eu com esta espada”, os testemunhos de uma prostituta e de membros da classe operária, uns velhotes anacrónicos, uns discursos que chegam a ser comoventes de tão genuínos: “É preciso é que vocês não se deixem vender por uma cerveja ou um porco gordo”. E bem no final de um filme um agricultor declara: “A terra é de quem a trabalha, os fascistas comem palha”.