“Um pouco de alecrim talvez ajudasse”, diz à VISÃO Sérgio Lopes de Barros, um dos reclusos do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) que teve “estômago” para assistir à apresentação de Estômago (estreia hoje, quinta), um dos raros filmes brasileiros que fez circuito internacional e que o realizador Marcos Jorge, ante-estreou em Portugal entre as grades daquele EP. Na realidade, a proposta da distribuidora Alabique de fazer uma ante-estreia diante de um público tão exclusivo (que é com quem diz, inclusivo), deixou o realizador um pouco apreensivo. Nervoso, até, confessa, na véspera da exibição: “O filme é politicamente incorrecto. Não é paternalista com ninguém”. Por todos os países por onde o filme já andou ninguém lhe propusera um desafio assim. Curiosamente no Brasil, focou-se a perspectiva mais gastronómica do enredo. “A crítica nem ligou muito para o lado prisional do filme, em Portugal pelos vistos, este está sendo o lado que puxou mais interesse”. Está bem que o EP de Lisboa não é nenhum Carandiru, a sobrelotação não os mantém enlatados em beliches decrépitos, como os da prisão real do filme (em Curitiba) mas mesmo assim o filme toca em pontos sensíveis para estes inquilinos forçados – ainda que de passagem, é preciso não esquecer: “Uma fábula nada infantil sobre poder, sexo e gastronomia”. E será que reclusos gostarão de ver um filme sobre reclusos? Tal como as pessoas que viajam num avião gostarão de assistir a um filme sobre desastres de aviões?. Pois, “não sei. Estou curioso. Só posso dizer que este é como filme de avião em que o avião não cai”.
E não caiu nem o avião, nem o Carmo nem o estabelecimento, no dia em que cerca de 40 reclusos (de entre uma população de 1030) assistiram ao filme, nem durante as cenas mais cómicas nem nas mais despidas. No EP de Lisboa há privação de liberdade, mas não de cinema: há televisão por cabo e DVDs à escolha, como se fosse um clube de vídeo. E aquele estômago caiu-lhes no goto – passe a impossibilidade digestiva da frase, já que o que cai no estômago é o passou previamente pelo goto. Mas enfim, a avaliar pelas risadas e pelos comentários laterais, os presos que se tornaram durante quase duas horas espectadores de “première” gostaram a valer. Mas será que não preferiam ver algo mais evasivo, que os fizesse fugir dali? Sérgio, o recluso que, no princípio do texto, fala de ervas aromáticas, garante que não: “Gostei mais de ver este filme, que fala sobre nós”. O director dos Serviços Prisionais, que esteve presente na sessão, repetiu várias vezes quão “interessante” achara filme. E retirou a sua própria moral: “O protagonista [o tal que na prisão ganhou a alcunha de Alecrim] tinha qualidades, tal como todos vocês têm, só que ele usou-as para o pior”.
“Manda novamente algum…
… cheirinho de alecrim”. Mesmo sem conhecerem a célebre canção de Chico Buarque, em diálogo com Portugal, os reclusos bem que gostariam de fazer esta encomenda para a cozinha prisional. É que, segundo Sérgio, a comida é mesmo o maior problema da cadeia, e por ali, ao contrário do que acontece no filme, não há nenhum recluso que se especialize em melhorá-la, nem que tenha essa oportunidade. Pelo que esta experiência cinematográfica serviu sobretudo para lhes abrir o apetite. Ou os apetites, pois, questões gastronómicas à parte, na tela também se mostram corpos nus de mulheres, perante os habitantes de um presídio que nem dispõe de aposentos de visitas íntimas.
Ainda assim, bem melhor do que o exemplo brasileiro que ali se projecta. “Na Ala A era parecido, era um salve-se quem puder”, queixa-se Sérgio. “Mas agora que estou na Ala G, é tudo muito melhor, como uma família”.
Sérgio já cumpriu 4 dos 14 anos a que foi condenado. E já se arrependeu do crime. Há dois anos, colocaram-no nesta ala especial de recuperação da toxicodependência, que funciona como uma prémio para os “melhores” reclusos. Na visita que a VISÃO fez, em exclusivo, a esta ala, acompanhando o realizador e a sua equipa, os próprios presos explicam as regras de funcionamento que excluem, na medida do possível, a intervenção dos guardas. No bar, oferecem um café, que segundo nos garantiu o guarda-chefe Teodoro, “é o melhor de Campolide”. Só que quem trabalha ou vive no bairro não o pode experimentar, enfim, privilégios de quem está preso do lado de dentro.
O humor é uma constante em toda a visita, sempre que se abre uma porta, de ala em ala, dos crimes perigosos aos sub-21, passando pelos preventivos, há sempre um guarda, a começar pelo sorridente chefe Teodoro, que não resiste à graça: “Entrar é fácil, sair é que é pior”. Ou “isto aqui arranja-se sempre cama para mais um”. Mas todos sabemos que, mesmo que pedíssemos muito, não nos deixariam ficar.
O realizador Marcos Jorge até parece estar com alguma vontade. Deixa-se fotografar dentro de uma cela, sentado na cama, precisamente na ala dos presos mais perigosos, que ironicamente são aqueles com ar mais pacato. Se nos cruzássemos com eles na rua dificilmente adivinharíamos a gravidade dos seus crimes.
Ainda assim, Marcos Jorge, com o seu fato de realizador, e aquela pose interessada e erudita, dificilmente passaria por um dos condenados. Contudo não esconde a curiosidade pelo sítio, e segue a visita com a máxima atenção e perspicácia, fazendo sempre a comparação com as prisões que visitou no Brasil enquanto preparava o filme, e uma outra, em Milão, de arquitectura semelhante.
De resto, o EP de Lisboa, na Rua Marquês da Fronteira, que há anos que está para ser desactivada, tem todos os ingredientes para Marcos Jorge se deixar fascinar. A começar pela construção em estrela de cinco pontas, que permite controlar do centro todas alas.
A directora faz questão de nos mostrar os refeitórios, impecavelmente limpos pelos próprios presos. Numa das alas tem uma enorme tela da Última Ceia, pintada por um ex-recluso, com Maria Madalena no lugar de Judas. Ela explica-nos a dificuldade na confecção dos pratos: “Se servimos bacalhau queixam-se os mais novos, se servimos hambúrgueres queixam-se os mais velhos, que dizem que aquilo é carne mastigada. Os muçulmanos não comem porco. Os de Leste não gostam de peixe. O africanos não querem batata. E depois há os que estão em dieta médica, por causa do colesterol, só que quando vêem a feijoada do vizinho também querem”.
Assim não há Nonato Alecrim nem Ratatui que lhes valha. Mas é verdade que a comida poderia ser melhor. A própria directora admite: “Na faculdade também me fartava de comer sempre na cantina”. O problema, claro está, é que estes não podem comer fora. Mas alguns comem dentro das celas. Compram uma lata de feijão e improvisam o seu repasto.
Pelo menos por ali não há larvas na comida como no filme, garante Sérgio, apesar daquela especialidade colombiana de formigas fritas preparada pelo chef Alecrim parecer um pitéu.
“Mas há baratas e ratos por todo o lado”, diz. Também não há banquetes com vinho fino nem queijo gorgonzola pendurado no estendal. Em contrapartida, as celas estão impecavelmente lavadas e arrumadas. Mesmo dentro dos armários, está apenas disponível um mínimo de roupa, para não alimentar a confusão. As regras, de resto, são para cumprir, em regime quase militar, que incluiem, por exemplo, fazer a barba todas as manhãs.
Úlcera social
E enquanto aos presos lhe oferecem esta refeição cinéfila, na tela desfilam história em que se cruzam vários tipos de manjares. E o primeiro é o maior banquete de todos os tempos e lugares, uma caldeirada social, onde peixes grandes devoram os pequenos. E Nonato é um pequeno carapau, nada de corrida, mais estilo “janquinzinho” que chega à grande cidade (propositadamente nunca especificada, mas as primeiras imagens são de São Paulo). Rapidamente é tragado pelo patrão oportunista que explora o talento de Nonato para fritar “coxinha”, uma espécie de pastel de massa tenra. Toda a gente se parece interessar pelo talento culinário deste cozinheiro, mas ninguém quer saber dele, de onde vem, para onde vai… O realizador jogou com os preconceitos do brasileiros em relação ao migrantes do nordeste. “Para os de São Paulo, todo o nordestino é Paraíba, os de São Paulo tratam-nos por baianos, e os dos estados do sul, chamam-nos cearences. No filme, todos lhe chamam uma coisa diferente, e ele nem consegue dizer de onde, de facto, é”. Também lhe chamam Parmalate, por causa da marca do leite, que é como quem diz depreciativamente “branquela”. Na verdade, ele também é um homem á procura da sua identidade, que se descobre entre tachos e panelas, refugados e ervas aromáticas. A voz off típica dos filmes brasileiros informa-nos que o seu nome é Raimundo Nonato (o nome de santo a que se recorre no Brasil em caso de apuros de parto), porque nasceu de cesariana de mãe morta. Mas quando vai parar à cadeia resolve arranjar um alcunha de bandido. Canivete, pensa. Alecrim é que pegou.
Esta primeira longa do também autor de livros de fotografia e artista plástico Marcos Jorge, vencedora de inúmeros prémios em festivais, nomeadamente o do Festival do Rio de Janeiro, “trabalha com clichés”. O cliché da prostituta que faz tudo menos beijar na boca, “uma ideia que nem sempre é verdade mas já foi incorporada até pelas próprias como uma conduta moralmente mais aceitável”. Mas apesar do dejà vu, e de algum sentido de ingenuidade, “o filme ri-se sobre si mesmo”. O realizador caracteriza-o como “um filme de humor negro”. Daí o nome estômago, para lhe dar uma carga visceral, “para que as pessoas não pensem que vão ver uma comédia romântica”. Por outro lado, “o estômago é onde tudo se mistura. E ser brasileiro é isso mesmo, uma mistura de índio, negro, português… Tal como afirmava o Movimento Cultural Antropofágico, dos anos 20: Nós somos a influência daquilo que comemos. O brasileiro é mestiço, tal como a boa comida é sempre uma mistura”.
Depois da vaga de favela-movies, causada pelo sucesso da Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, que gerou muitos filhotes e imitação, este é um filme onde se fala de violência, mas de outra maneira. O coração parte-se pelo estômago, mas também se conquista através do estômago. Ele é o órgão central do filme, que tem a sua key-image na cena de um banquete muito “davinciano”, em que apenas Judas está sentado do lado de cá da mesa. No princípio e no fim, não passamos de um tubo digestivo – “a sociedade também ela é um tubo digestivo, entrando dentro dele, tudo se degrada , e corrompe” – daí o filme começar num plano aproximado de uma boca e terminar num “traseiro”. Mas não é isso que interessa a este realizador que se assume como “meio gourmet”, que até aprecia bacalhau: “Não são o restos que contam, o que me interessa é o processo, o prazer, o gosto em comer.
Sexo, poder e culinária
O estômago também tem razões que a razão desconhece e realizador estabelece um paralelo muito original entre as celas e as cozinhas: “as relações de poder exarcebam-se, as pessoas brigam muito, fala-se muito palavrão. , pouco espaço, todo o mundo está apressado…” No fundo este é um filme sobre o poder, “que nunca é demais”. Não existe sensatez- nem de estômago vazio. Nem nunca se resolve fazer dieta de poder. E lá por Nonato ter ido parar a uma cela não quer dizer que ele tenha descido na hierarquia social. Aliás, o único espaço onde o cozinheiro está que tem janela, ainda é a sua cela, uma fresta onde se pendura ténis e queijo Gorgonzola.
O realismo prisional é um dos pratos principais do filme. O realizador teve a fantástica oportunidade de filmar numa prisão real, em Curitiba, que acabara de ser evacuada e desactivada. Mas todos os presos foram transferidos apenas com a roupa que tinham no corpo, tudo o resto, objectos pessoais, colagens na parede, baralho de cartas clandestino foi deixado para trás – o que constituiu o melhor décor e os mais verosímeis adereços. Aliás, o realizador tomou como consultor um escritor brasileiro, ex-presidiário, que esteve preso 31 anos por homicídio. Para ele prisões não tinham segredo, “ia encontrando rolinhos de maconha disfarçados em buraquinhos na parede” e todo o género de apetrechos proibidos…
Há uma cena em que o corpo nu da prostituta é iluminado pela luz da “geladeira”, quase como uma citação do 9 semanas e meia, “e deixa ver as suas curvas abundantes, o som radioso de uma viola de gamba, instrumento do barroco que quase caiu em desuso, uma outra melodia muito delicodoce, e fantasiosa “como homenagem aos filmes de Leone”. E também um beijo muito despudorado e uma certa entrada muito especial, que o realizador baptizou de Anita (goiabada) e Garibaldi(Gorgonzola). Mas “a cena da transa” passa de grotesca a divertida, acredita o realizador, “e foi muito apreciada até por velhinhos”. Só não tem moral da história, mesmo, garante. E cita de cabeça o verso de Álvaro de Campos: “Porque a alma humana é um abismo. Eu é que sei”.