E eis que surge o segundo filme mais esperado do ano – o primeiro era Avatar. Há meses que o marketing alimentava a curiosidade do público, a conta gotas. Primeiro, uma Alice crescida (a quase estreante Mia Wasikowska) competentemente vestida de azul, de cabelos louros e ondulados. E o público aprovou. Depois mais um alucinado Johnny Deep (chapeleiro louco), ferozmente maquilhado, quase fluorescente, insanemente esgrouviado . E o público: ahhhhhh!. Depois ainda uma Helena Bonham Cárter, a rainha de copas, esta numa recriação mais genuinamente burtiana, com uma cabeça enorme, e umas entradas no cabelo vermelho, em forma de coração. O público também salivou. E, desta vez, como mais razão. Talvez seja esta a figura mais conseguida de todo o naipe que compõe uma das mais delirantes histórias da literatura mundial. A actriz passava três horas a maquilhar-se depois digitalmente criavam-lhe aquela ilusão de macro-cefalia. Na versão da Disney tinha um ar de alambazada rainhaVitória e nos desenhos originais do livro de matrona autoritária. Em Burton, a rainha do “cortem-lhe a cabeça”, que jogava criquete com um flamingo e um ouriço-caixeiro, tem um ar sinistro: assim um misto entre o Drácula de Coppola e a rainha Amidala do Star Wars. O sorriso sem gato é fascinante, o coelho do relógio também, assim como os gémeos Tuidledim e Tuidledum e a lagarta azul, a fumar o alambique em cima do cogumelo. O exército de baralho de cartas não tem grande graça e a rainha branca (Anne Hathaway), no seu look “punk rock vegan pacifist” muito menos. O filme arranca bem, com uma Alice olheirenta e atormentada por pesadelos, sempre distraída por pássaros que voam e roseiras que se agitam pela passagem de um coelho apressado. Burton rodou em duas dimensões e depois decidiu passar tudo para 3D, o que acresce sempre o grau de maravilhamento, mas também não deslumbra. E apenas construiu dois sets, de resto, todos os cenários são concebidos digitalmente, e para aquilo a que Burton nos tem habituado bastante pobres e até delicodoces. De resto, é um filme construído de “auês”, como diriam os brasileiros. Conquista-se o público com esta galeria fascinante de personagens que são do domínio público mundial. Concedesse-lhes alguns momentos de encantamento, sobretudo pelo reconhecimento de tantos episódios que fazem parte do nosso imaginário mais recorrente: a queda de Alice na toca, o chá com o chapeleiro louco, a forma como se agiganta quando come o biscoito que diz “come-me” ou como se apequena quando bebe a garrafinha que diz “bebe-me”, o grito recorrente da rainha sempre pronta a fazer rolar cabeças, o jogo de criquete inteiramente biológico… Mas francamente isto não basta. Por mais que o marketing diga “bebe-me”, e os bons momentos do filme apregoem “comam-me”, isto não é suficiente para engrandecer o filme. Também não o diminui. E aqui quase que entramos naquilo que justamente falta na obra de Tim Burton que muitas concessões açucaradas deve ter dado à Disney. Porque o encanto deste livro de Lewis Carrol, de meados do século XIX, o que na realidade o tornou num clássico- que são aquelas obras que nunca acabam de dizer o que têm para dizer – é justamente este “sim”, que também pode logo a seguir ser “um não”. E mais à frente “um talvez”. É um livro, com excelentes personagens e situações, mas construído todo ele com base nos paradoxos, nos absurdos e no nonsense. Sobretudo nos paradoxos da linguagem, quando os significados das palavras não são o que parecem, quando se desconstroem as significâncias e se fazem os mais intrincados enigmas e jogos de palavras. Quando se inventam palavras. E muito pouco disto se transpõe para o filme. A não ser na pergunta recorrente do chapeleiro: “O que é que uma secretária tem a ver com um corvo?”.A ideia de colocar a Alice crescida que regressa à toca do crime também não é tão feliz quanto isso. É que metade do encanto do livro reside nos paradoxos infantis, numa imaginação à solta de uma menina, que debaixo do chão tem de domesticar os próprios delírios que cria. Uma menina que constrói o caos mas, nesse país das maravilhas, do outro lado do espelho, é ela própria quem o domina. Ela tem de pôr limites à sua própria imaginação. E à sua perpétua reflexão sobre o que faz e o que diz. É lá que ela, sozinha, sem os admoestamentos dos adultos, lhes puxa pela trela. Porque já nem ela admite tão descabelada imaginação. Debaixo da terra, Alice, a menina mimada e distraída, é a voz da sensatez, no meio do total nonsense. A isto chama-se crescer, obrigar-se a criar um cosmos. E todos aqueles inchamentos e desinchamentos têm a ver com isto: com a sensação de um crescimento súbito, de desporporção momentânea pela qual passam todos os pré-adolescentes- e que era tão bem mostrado na animação de Marjane Satrapi. Alice somos nós, porque todos nós, antes de nos deixarmos domar pela tirania da normalidade, nos sobressaltávamos com o absurdo das coisas e das palavras e do mundo ao contrário. Lewis Carroll era professor, ainda por cima de matemática, conhecia bem os raciocínios infantis, e todos os lados insólitos que contém as explicações dos adultos e as desconstruções das palavras. Conhecia bem o tédio infantil, as formas de evasão, as nossas tocas de coelho. Nada disto está no filme. Tem algumas maravilhas, sim. Mas falta-lhe a essencial que torna a história reconhecível e perpetuável. Senão o quê? É só uma galeria de boas personagens a desfilar no ecrã. Come-se um bocadinho, mas escondem-se os restos debaixo dos talheres.
![legenda olhos](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/11/6213880legenda-olhos.jpeg)