Todos os barcos precisam da sua ratazana. É um facto. Tetro, a personagem que dá título ao novo filme de Coppola, é uma ratazana. Foi o primeiro a abandonar o barco, quando se prenunciou o naufrágio. Quando a família já estava meio submersa pela tragédia. Anunciam-se ventos, intempéries, tormentas e vendavais, no novo filme de Coppola. Armam-se as velas, lançam-se os alertas, tocam os alarmes a rebate, preparamo-nos para enfrentar fatalidades e infortúnios. O filme arranca logo em estado de emergência, em alerta laranja ou quase vermelho. E afinal, a tormenta que se avizinha redunda numa vaga de molhar os pés. A tempestade pariu uma ondinha, e a montanha uma ratazana – com a dimensão trágica de um hamster.
Por ter este anti-clímax decepcionante,
Tetro não deixa de ser um filme extraordinário. Porque tem um realizador extraordinário, que agora nesta fase já faz o que quer e como quer, corre os riscos que lhe apetece (como fazer um filme a preto e branco parcialmente falado em castelhano da argentina), sem se deixar marionetar (esta palavra existe?) pelos grandes produtores de Hollywood. E porque tem uma fotografia a preto e branco poderosíssima (a cargo do jovem romeno Mihai Malaimare, com quem Coppola já trabalhara em
Juventude sem Juventude – e que, por acaso, também esteve com o realizador em Portugal, durante o Estoril Film Festival).
Depois de
Rumble Fish (1983),
Tetro marca o regresso de Coppola ao preto e branco, como o dos grandes realizadores que admira. Noventa por cento de
Tetro tem esta tonalidade sombria, dramática e poética (porque o preto e branco não é só ausência de cor). Também como em
Rumble Fish há apontamentos de cor. Coppola inverte as convenções. O presente retrata-se a preto e branco, muito clássico e contrastante, cheio de cinzentos, boas composições de luz e sombra, captadas com uma câmara estática. O passado é a cores, em tons meio esborratados e uma câmara mexida, como as imagens de um homevídeo.
Também como em
Rumble Fish, o filme fala da relação entre dois irmãos. Vicent Gallo é o irmão mais velho que abandonou a família nos EUA e foi viver para a Argentina – por meras conveniências de produção, explica Coppola, que procura situar os seus filmes em países, onde o câmbio para o dólar seja favorável, como a Argentina ou a Roménia. Por isso, explicou quando esteve cá, é que nunca fará um filme passado em Portugal ou na Europa, onde o euro está demasiado alto.
Também escolheu a Argentina para localizar a sua história porque era um pais, explicou, com boa comida, boa música, um país agradável, onde não se importaria de passar os 13 meses de rodagem.
Vicent Gallo tem aquele ar meio selvagem e alucinado. Coppola achou-o parecido com o poeta maldito Antonin Artaud. E de facto ele encaixa bem na pele de personagem maldita.
O filme tem uma possante introdução de personagem. Tal como se deveria aprender nas escolas de cinema. Ainda antes de aparecer a personagem anuncia-se em todo o seu esplendor. Instala-se com uma força medonha, quase operática. A sua primeira aparição é fantástica, primeiro apenas um gesto que empurra brutalmente uma porta, depois aparece de corpo inteiro, a empurrar cadeiras, a provocar estrondos, com muletas e uma perna engessada. Parece temível, uma espécie de Heathcliff de O Monte dos Vendavais, de espírito irascível e de humores ferozes. Só que, ao contrário, da terrível personagem de Emily Bronte, neste filme todos os argentinos simpatizam imenso com este Tetro, não se percebendo exactamente porquê. Ele é o homem dos holofotes . As traças atraídas pela sua luz queimam as asas – é a alegoria inicial do filme. Tetro trabalha num teatro de bairro um bocado (um bocado muito) bizarro, e é um poeta incompreendido, um dramaturgo cheio de talento sepultado, mas muito apreciado por outra muito bizarra criatura, uma crítica literária da Patagónia, interpretada por Carmem Maura, que comparece num dos momentos mais descarrilados do filme.
Tetro é um ser torturado, porque tem um pai dominador, director de orquestra famoso de ascendência italiana (tal como o pai de Coppola), que impõe que naquela família só haja lugar para um génio. Algo na personagem faz lembrar James Dean em
A Leste do Paraíso, de Elia Kazan. O mesmo génio atormentado e muito revoltado, que não consegue agradar ao pai e também tem um irmão bonzinho. Tetro remete para tantos lados, para tantas referências (algumas antagónicas) que não se consegue fixar em nenhuma. E pura e simplesmente a emoção dilui-se. E não transita.
Entretanto, o irmão mais novo chega ao bairro de La Boca, em Buenos Aires, a bordo de um paquete. Todo o que em Tetro é yin, nocturno, sinistro e malévolo, no irmão mais novo é yang, solar, luminoso, simpático, curioso, sorridente. Tudo nele irradia luz e juventude, até o uniforme branco e brilhante, que contrasta com as cores escuras e os blusões de couro envergados pelo seu amargo misterioso irmão. Alden Ehrenreich foi a grande descoberta de Coppola neste filme. É um novo Leonardo Di Caprio (aliás, parecidíssimo), que tinha apenas 17 anos, quando o realizador lhe fez o casting e lhe deu a ler, não por acaso,
Uma Agulha num Palheiro, de J.D. Salinger.
Foi assim que Coppola idealizou a sua vida, a escrever e a realizar os seus próprios argumentos originais. Talvez seja esta tripla combinação (Coppola integralmente dono de um filme seu, Coppola enquanto cineasta de autor – ele é argumentista, realizador e produtor), que faz com que algo não funcione. E com que Tetro seduza tanto e convença tão pouco. Às vezes, estas improváveis coincidências acontecem.