Não é um conflito complexo. Estamos perante um crime documentado e amplamente denunciado por organismos internacionais independentes. Gaza foi devastada até ao limite do habitável e quando já quase nada restava para destruir, falou-se em cessar-fogo. Não foi por vontade de pôr fim à violência, mas porque o território já tinha sido totalmente devastado.
O bombardeamento diário diminuiu, mas a violência continua. Gaza permanece ocupada de facto, segundo o direito internacional. O bloqueio mantém-se. A ajuda humanitária entra a conta-gotas, quando entra. Agências das Nações Unidas e organizações humanitárias continuam a denunciar entraves administrativos, controlo militar israelita sobre as rotas e insegurança deliberadamente criada para impedir a distribuição.
Continuam a morrer pessoas por ferimentos não tratados, por falta de abrigo, por frio, por fome. A punição coletiva – proibida pelas Convenções de Genebra – continua.
Os drones continuam a sobrevoar Gaza. O ruído constante é reconhecido por especialistas em direitos humanos como uma forma de tortura psicológica. Crianças brincam nos escombros porque não têm outro lugar. Essas imagens são fortíssimas e expõem o falhanço total da humanidade e da chamada comunidade internacional.
E enquanto Gaza se mantém no trilho da morte, a Cisjordânia continua a ser estrangulada. Ali, não há guerra declarada e isso torna o que lá acontece ainda mais revelador. Israel intensificou incursões militares, detenções em massa, demolições de casas, destruição de olivais e a contínua expansão de colonatos ilegais. Os palestinianos continuam a ser presos, sem acusação formal, em regime de detenção administrativa, incluindo menores. Muitos dos libertados em acordos de troca foram novamente detidos. Isto configura claramente domínio colonial e repressão sistemática. Não sobram dúvidas.
Esta violência atinge também as comunidades cristãs palestinianas. Em Jerusalém Oriental, Belém e Nazaré, os cristãos palestinianos enfrentam restrições de circulação, intimidação e ataques de colonos. Celebrações religiosas, incluindo a quadra natalícia, têm sido limitadas ou condicionadas por decisões das autoridades israelitas, em territórios sob ocupação. É um escândalo histórico e moral que, em Nazaré, terra associada ao nascimento de Jesus, a vivência plena do Natal seja impedida pelo poder ocupante (Israel).
Tudo isto viola frontalmente o direito internacional humanitário e as Convenções de Genebra. Não é uma opinião. É um facto jurídico repetidamente afirmado por relatores especiais da ONU, pelo Tribunal Internacional de Justiça em pareceres consultivos e por organizações de defesa dos direitos humanos que qualificam estas práticas como apartheid e formas de limpeza étnica.
E o mundo? O mundo assiste.
A União Europeia mantém acordos de cooperação com Israel, incluindo o Acordo de Associação UE-Israel, que prevê explicitamente o respeito pelos direitos humanos como condição. Essa cláusula é ignorada. Não é por falta de provas documentadas. É por conveniência política. Suspender esses acordos teria consequências económicas e diplomáticas, e é exatamente isso que a UE se recusa a assumir.
Ao mesmo tempo, Israel continua plenamente integrado em eventos culturais europeus, como se nada estivesse a acontecer. A Eurovisão é o exemplo mais obsceno dessa normalização. Um concurso que se diz apolítico mas aceita a participação de um Estado acusado de crimes de guerra e violações sistemáticas do direito internacional. A razão é política e económica: grandes patrocinadores e muitos interesses instalados.
Nas prisões israelitas, a desumanização atingiu níveis alarmantes. Foram tornadas públicas declarações de médicos israelitas e debates em meios médicos e mediáticos sobre a possibilidade de administrar substâncias letais a prisioneiros palestinianos. Mesmo enquanto discurso, isto representa uma violação grave da ética médica internacional e revela até onde chegou a normalização da barbárie.
Chamar isto de neutralidade é mentir. Neutralidade perante um crime é cumplicidade.
Não se trata de ser contra Israel por reflexo ideológico.Trata-se de exigir consequências a um Estado que age com total impunidade sustentada por aliados internacionais. Israel tem de ser severamente punido: sanções políticas e económicas, embargo de armas, suspensão de acordos de cooperação, apoio efetivo aos mecanismos de justiça internacional. O resto não passa de retórica.
E é fundamental dizer que o problema não se limita a Netanyahu. Ele é responsável, mas não atua sozinho. Uma parte significativa da sociedade israelita foi politicamente alimentada pela desumanização dos palestinianos, pela lógica da supremacia, pelo ódio normalizado e pela violência legitimada. Quando uma sociedade aceita ou aplaude a destruição de outro povo, o problema deixa de ser apenas do governo e torna-se estrutural.
Os palestinianos têm de ser ajudados na sua própria terra, não como um favor, nem como caridade, mas como um direito. É urgente e obrigatório ajuda humanitária plena, proteção internacional real, e que a reconstrução aconteça sem o controlo do ocupante (Israel) e com a autodeterminação do povo palestiniano. Sem tutelas coloniais disfarçadas de processos de paz.
A Europa gosta de falar de valores. Mas valores que não se praticam são apenas verniz. O verniz está a estalar e o que está à mostra não é nada bonito de se ver.
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