Cenário das mil e uma noites. Odete Santos, vestida de odalisca, vai recusando os sucessivos noivos que o génio da lamparina lhe tenta impingir. Aos “três do Bloco de Esquerda”, Francisco Louçã, Miguel Portas e Fernando Rosas, diz que não. Não a Mota Amaral, “que é do Opus Dei”, não a Marques Mendes, Narana Coissoró, António Costa. Já Carlos Carvalhas lhe agrada e imagina-se noiva, toda vestida de vermelho.
A deputada Odete Santos é Sherazade, uma mulher das arábias, na nova revista em cena no Parque Mayer.
Foi a grande estrela da estreia de Vá Para Fora… Ou Vai Dentro, no Teatro Maria Vitória, a semana passada. No intervalo, à porta, o público comentava sobretudo a cena em que a deputada aparece de D. Maria I, a rainha louca, revirando os olhos e fazendo caras engraçadas. Embora confesse ter chegado à conclusão de que tem mais características para fazer teatro sério, não esconde o pagode que a comédia lhe está a proporcionar. É a primeira vez que faz revista e não destoa dos actores mais experimentados.
Como estarão os seus colegas do Parlamento a ver esta faceta de Odete Santos? “A revista é uma forma de teatro que está mais perto do povo. A credibilidade nasce do povo e não nos corredores silenciosos”, defende-se a deputada de antemão, consciente do risco das críticas, mas sem lhes ceder. Na Assembleia, no entanto, olha-se com normalidade o trabalho de Odete Santos no Parque Mayer. Tavares Moreira, deputado e vice-presidente do PSD, acha mesmo que lhe dá “uma certa frescura”. “Participar numa revista não lhe tira a credibilidade. Não era capaz de ver um deputado como saltimbanco num circo, mas o teatro é diferente”, continua. Tavares Moreira vai mais longe, afirmando que lhe aprecia mais esta actividade do que “as suas intervenções no Parlamento”.
Ainda no campo da ironia, Nuno Melo, vice-presidente da bancada do CDS/PP, considera que também no Parlamento se manifesta o “jeito” da dirigente comunista para o teatro. “Ela é profundamente teatral na forma como intervém, gesticula, como reage. Tem um dom e deve desenvolvê-lo. Além disso, o teatro é uma actividade legítima e muito respeitável”, diz o deputado dos populares. Mas Odete Santos sabe que a revista é muitas vezes considerada um genéro menor da arte dos palcos.
Três semanas de hesitação
Talvez por isso tenha hesitado tanto em aceitar, embora discorde da etiqueta depreciativa (“Há mau e bom teatro em qualquer género”). Demorou três semanas a pensar. Pediu opiniões, aconselhou-se com amigos. Mas não com o partido, “A participação na revista é da área privada”, justifica. O PCP viria a levantar reticências, já depois de Odete Santos ter aceite o convite, manifestando “preocupações que tinham a ver com a sobrecarga de trabalho”, uma vez que a deputada é muito solicitada para tarefas políticas.
Quanto às preocupações do partido, a deputada está determinada em não lhes dar fundamento. Na noite da estreia de Vá Para Fora… Ou Vai Dentro chegou a casa, em Setúbal, às três da manhã. No dia seguinte, às 10 horas, estava na Assembleia para a discussão do Orçamento do Estado e para tomar parte numa reunião da sua bancada. “Durmo menos e trabalho mais ao fim-de-semana, mas faço questão de não tirar tempo ao trabalho parlamentar”, refere, embora tema não aguentar o ritmo até ao final da temporada da revista.
Carlos Carvalhas assistiu ao espectáculo, na última sexta-feira, 21. Riu-se muito com as piadas, considerando a revista de “forte crítica social”. Fez-lhe só um reparo, divertido: “A dançar ela não está tão à vontade”. Para o deputado socialista Medeiros Ferreira, a ida do secretário-geral do PCP à revista tem também uma leitura política: “Mostra que o partido não a renega, que está com ela nesta faceta. O PCP é, aliás, um defensor cultural da revista à portuguesa”.
Ligação mediática
Às actividades de deputada e actriz há ainda a acrescentar as solicitações mediáticas de Odete Santos, por estes tempos desdobrada em entrevistas. “Recusei algumas, mas não consegui fugir a isso. A própria companhia pediu-me para ajudar a promover a peça”, explica. Desafina assim com o género reservado dos dirigentes comunistas. Ela acaba por ser a ligação do partido ao mundo e frente às câmaras está como peixe na água.
“Isso não se coaduna com o estilo que habitualmente se cola ao PCP e por norma acontece com pessoas cuja personalidade é muito vincada”, considera João Teixeira Lopes, deputado do Bloco de Esquerda. Para o social-democrata Tavares Moreira, Odete acaba por dar “uma imagem mais actual e moderna ao PCP, em vez da imagem sectária e voltada para o passado”. De acordo com Medeiros Ferreira, quem participou em movimentos como as lutas estudantis caso de Odete Santos “foge aos estereótipos do aparelho partidário, tem uma maior ligação à vida”.
Estará ela a afastar-se de uma certa construção cunhalista dos dirigentes do partido? “No livro O Artista, a Vida e a Sociedade, Álvaro Cunhal dedica algumas páginas ao humor na arte”, defende- se a deputada.
O que seduziu Odete Santos no Parque Mayer foi justamente “a possibilidade de utilizar o humor na crítica social e política”. Para a deputada, a revista “pode ser ainda um meio de luta política”, como acontecia antes do 25 de Abril, quando os actores, nas entrelinhas, davam a volta à censura. A deputada garante que não está ali “para reivindicar nada, mas por gostar de teatro”.
‘Não sou santanista’
Não lhe faltam oportunidades para brincar com a situação do País. Numa rábula com o actor Ricardo Castro, em que interpretam duas manas a tricotar, Odete faz um trocadilho com a palavra “comichão” (de trabalhadores). “Se o Bagão ouve, ainda mete no Código do Trabalho despedimento por comichão”, graceja.
Personagens como Fátima Felgueiras (representada por Licínio França) ou Paulo Portas vestido à tropa, a “metralhar” a plateia com uma espingarda são motivo de chacota nesta revista à portuguesa, escrita e encenada por Mário Rainho e protagonizada por actores como Noémia Costa, Diogo Morgado ou Paulo Vasco.
A companhia do empresário Hélder Freire Costa é a única que subsiste no decadente Parque Mayer. Estão de alma e coração com Santana Lopes, esperançosos nas intenções do presidente da Câmara de Lisboa de reabilitar o antigo centro de boémia e arte da capital. “Não sou santanista”, garante Odete Santos, com um sorriso, “mas se a reabilitação do Parque Mayer for feita, é de interesse público”. A deputada recorda quando, nos seus tempos de juventude, foi ao Parque Mayer que, “aos olhos de uma ideologia conservadora, era muito malvisto”. Fascinou-se com os grandes actores como António Silva ou Vasco Santana. Não se incomoda nada com as piadas brejeiras. “Não é de agora, sempre achei graça”, confessa. E conclui: “Estou a divertir-me”.