Certamente que o antigo banqueiro João Rendeiro estava longe de imaginar que a fuga à Justiça portuguesa, que, desde 28 de setembro, tornou pública ao País, terminaria no buraco fundo de uma cela de uma das mais perigosas prisões da África do Sul – um sistema prisional muitas vezes apontado, por académicos e organização não-governamentais (ONG), como um exemplo de violação dos mais elementares direitos humanos.
Na África do Sul que vive por detrás das grades, ninguém sabe como vai ser o dia seguinte. E quando o sol e as luzes se apagam, os piores pesadelos são vividos de olhos (bem) abertos – a violência, a doença e a morte jamais tiram folga.
O portal SaferSpaces, que se dedica à prevenção da violência e do crime no País, tem vindo a alertar, nos últimos anos, para o cenário caótico no interior das prisões sul-africanas. Segundo os dados publicadas pela organização, existem 243 cadeias na África do Sul, onde permanecem detidas mais de 160 mil pessoas, na sua esmagadora maioria do sexo masculino (cerca de 97%). As condições dessas instalações são adjetivadas como “particularmente terríveis”, mas a realidade, no caso, até pode vir a superar a ficção: “Os reclusos experimentam uma sobrelotação extrema e condições de vida desumanas, incluindo ventilação deficiente, instalações sanitárias inadequadas, falta de saneamento e de privacidade, falta de camas e de roupa de cama, de supervisão e de cuidados de saúde”, refere a SaferSpaces.
O tema está longe de ser novo. Já em 2013, a Amnistia Internacional (AI) apelava ao empenho do Governo de Jacob Zuma para a investigação de episódios de alegados maus-tratos e tortura (com choques elétricos) em algumas cadeias do País. Curiosamente, Zuma seria mais tarde detido e condenado, cumprindo pena na mesmo prisão em que se encontra Rendeiro. Libertado em setembro, o antigo Presidente recebeu, esta quarta-feira, ordem para voltar a Westville, para cumprir uma pena de 15 meses.
Violações sexuais: um fenómeno quotidiano
As (péssimas) condições das prisões sul-africanas contribuem para um fenómeno trágico (e chocante), mas comum: as violações sexuais de reclusos. A Just Detention International-South Africa, uma ONG dedicada aos direitos humanos, assumiu como missão travá-lo.
Foi precisamente a Just Detention, através de um polémico relatório, que denunciou, abertamente, esta situação, que ainda continua a ser um tabu no País. Os abusos sexuais são “um problema generalizado nas prisões da África do Sul”, diz a Just Detention. “As pessoas que são vítimas tendem a ser aquelas que são vistas como ‘femininas’ e que não vivem à altura de estereótipos hiper-masculinos. Muitas são jovens, pequenas em estatura, ou que estão na prisão pela primeira vez. A maioria dos sobreviventes são abusados repetidamente, demasiadamente receosos e humilhados para darem o passo em frente e denunciarem a violência de que são alvo”, lê-se no relatório. A organização, aliás, não tem dúvidas: a violência sexual atrás das grades está sempre diretamente ligada “às terríveis condições prisionais” existentes.
Sem camaratas individuais – o próprio Rendeiro partilha a cela com mais reclusos –, há até relatos de leilões para escolher quem será a próxima vítima. A noite é perigosa, e tem sérias consequências. Pesquisas realizadas por académicos e ONG, indicam que o índice de infeção por HIV e tuberculose entre prisioneiros é o dobro do que o da população sul-africana em geral. Na prisão de Westville, em particular, dados apontam para uma probabilidade superior a 90% de um prisioneiro poder vir a ser infetado com o vírus da Sida, nas primeiras 48 a 72 horas de detenção.
Westville: sobrelotação, violência e doença
“Dois guardas-prisionais foram esfaqueados na prisão de Westville, em Durban, na manhã de terça-feira”. Era com esta frase que, no passado dia 13 de julho, a edição online do jornal sul-africano Sunday Times abria a notícia sobre o mais recente caso ocorrido no estabelecimento prisional onde João Rendeiro se encontra detido, há três dias e três noites. Este estabelecimento prisional, situado na província costeira de KwaZulu-Natal, corresponde extamente à análise feita até aqui: sobrelotação, violência, doença e morte, tornam esta prisão uma das mais perigosas da África do Sul (e do mundo).
Depois de ter sido detido no sábado, 11, Rendeiro ainda conseguiu passar dois dias (durante o fim-de-semana) numa cela da esquadra de polícia de Durban Norte, mas, na segunda-feira, 13, acabaria transferido para Westville. Logo nessa noite, o antigo banqueiro terá, segundo a sua defesa, recebido ameaças de morte de outros reclusos. A advogada June Marksa anunciou, no dia seguinte, que pretendia pedir transferência imediata para outra prisão na sequência desta ocorrência, o que até ao momento não aconteceu.
Pior do que um saco de gatos, a prisão de Westville tem um problema de sobrelotação que já se arrasta há anos. Em 2005, o estabelecimento tinha mais de 40 mil prisioneiros (uma população diversa que incluía de menores com 14 anos a idosos). Dados deste ano, publicados no sul-africano Business Insider, estimam, atualmente, em cerca de 14 mil o total de detidos naquela cadeia, o que representa uma sobrelotação de 130%.
No meio da anarquia, Westville mantém-se sinónimo de violência e morte. O ataque a dois guardas-prisionais, em julho passado não foi, aliás, um episódio inédito. Em 2016, conflitos entre reclusos, membros de gangues, na sequência da suspensão do diretor da prisão – suspeito de criar canais de comunicação e contrabando com o exterior –, resultariam em três mortos e 30 feridos, como noticiou, na altura, o portal online News24. Já em 2004, o mesmo jornal denunciava as condições desta prisão, na ressaca do assassinato de um recluso e da fuga de outros 46.
Decisão adiada para sexta-feira
Esta quinta-feira, 16, é feriado nacional na África do Sul – assinala-se o Dia da Reconciliação que, desde 1994, festeja o fim do regime do Apartheid. Por isso mesmo, os tribunais estão encerrados. Assim, João Rendeiro, terá de esperar, pelo menos, mais 24 horas para ouvir da boca do juiz de 1.ª instância se se mantém na prisão ou pode sair em liberdade sob fiança (a leitura da decisão está agendada para as 09h00 locais, menos duas horas em Lisboa) – a defesa propôs ao tribunal a imediata libertação do detido sob fiança de 2.190 euros.
A intenção da Justiça portuguesa será fazer chegar às autoridades sul-africanas o pedido de extradição para que Rendeiro cumpra pena em Portugal, pedido que o Ministério Público terá de fazer chegar à África do Sul até ao final de janeiro. Na quarta-feira, perante a notícia do Público sobre eventuais dificuldades na tradução do processo para inglês – situação que poderia impedir, em tempo útil, a formalização desse pedido –, a magistrada Maria José Morgado garantiu que “nada vai atrasar” a extradição. O próprio Luís Neves, diretor nacional da Polícia Juidicária, responsável pela detenção de João Rendeiro – operação que contou com a colaboração da polícia sul-africana –, também já tinha assegurado, no passado sábado, aquando do anúncio da detenção do antigo banqueiro, que “há mecanismos legais” para se concretizar a extradição.
Recorde-se que o ex-presidente do BPP, condenado em três processos distintos (embora apenas um tenha já transitado em julgado), estava fugido da Justiça portuguesa, até ser encontrado e detido pela polícia num resort de luxo em Durban, na África do Sul. Rendeiro saiu do Reino Unido, num avião privado, no dia 14 de setembro; passou pelo Catar e, no dia 18 desse mês, entrou na África do Sul. Depois de ter passado por Joanesburgo – e, eventualmentre, por outros países (situação que as autoridades não excluem) –, mudou-se para Durban. A 28 de setembro, anunciava, no seu blogue pessoal, Arma Crítica, a intenção de não regressar a Portugal para cumprir a pena. Os planos, porém, saíriam furados.