“Por isso hoje eu acordei com uma vontade danada / de mandar flores ao delegado / de bater na porta do vizinho e desejar bom dia / de beijar o português da padaria”. De onde vem este ímpeto, descrito em Telegrama, uma das mais famosas músicas do cantor e compositor Zeca Baleiro, que reconheceu a “estranheza” da letra, maior do que a melodia?
Ir ao encontro dos outros faz parte da natureza humana, gregária por definição. Marcar presença ou sentir essa presença devolve-nos a impressão de não estarmos sós e de sermos parte da tribo ou da comunidade. Contudo, é frequente reprimirmos o desejo de meter dois dedos de conversa com alguém que não faz parte das “nossas pessoas” e usufruir do conforto e do bem-estar que daí possam resultar. Talvez por não confiar nelas ou, pior, por medo de que essa atitude seja vista como algo indesejado, convertendo o protagonista num “melga”, com falta de noção dos limites. E, de facto, assim é, a avaliar pela conclusão a que chegou uma equipa de investigadores em ciências comportamentais, que publicou um estudo, em setembro, no Journal of Personality and Social Psychology.
Estudos mostram que tendemos a subestimar o valor das conversas significativas com desconhecidos e a exagerar nos medos, apesar de as desejarmos e de nos fazerem bem
Michael Kardas, Amit Kumar e Nicholas Epley realizaram 12 experiências com mais de 1.800 tópicos que envolviam conversas superficiais (programas televisivos, o tempo) e profundas (a última vez que se chorou à frente de alguém, por exemplo) e pediram aos participantes para estimarem o grau de conexão e a agradabilidade ou embaraço que sentiram. Embora todos tivessem experienciado sentimentos de conexão, as conversas com maior profundidade foram avaliadas como melhores e mais agradáveis.
Ao analisar a propensão humana para conversas triviais, em detrimento de outras, mais profundas, com desconhecidos, a equipa descobriu que as pessoas subestimam o valor destas experiências e dão uma importância excessiva aos seus receios nas interações quotidianas, desde expor vulnerabilidades suas a pressupor que os outros as achem desinteressantes.
Estas expetativas negativas acabam por influenciar a decisão de dar-se mais e perder oportunidades para se sentirem felizes. Embora as conversas íntimas fortaleçam os laços sociais e beneficiem os relacionamentos, a tendência a evitá-las advém de expetativas infundadas sobre si e os outros e, se esses constrangimentos forem superados, os outros costumam retribuir.
Vitamina de saúde mental
À luz da neurociência, quebrar o silêncio e cumprimentar um desconhecido, numa fila, no elevador ou na caixa do supermercado, estimula a atenção e os sentidos e constitui uma via para exercitar as competências sociais. Estabelecer contacto com um semelhante é uma fonte potencial de emoções positivas – a dopamina, libertada no cérebro, também marca presença aqui – e pode fazer a diferença no dia de alguém. Da mesma forma, encontros com maior grau de profundidade trazem significado, alegria e valor acrescentado à vida, como mostrou, há uma década, o psicólogo americano Matthias R. Mehl, da Universidade do Arizona.
O distanciamento físico e a limitação dos rituais de socialização associados à pandemia refletiram-se no aumento das perturbações ansiosas e depressivas e trouxeram solidão e sede de proximidade. Na transição que vivemos agora, as conversas de circunstância ganharam um novo sabor, até para as pessoas com traços de introversão, geralmente mais reservadas e seletivas nas interações quotidianas.
A investigadora britânica Gillian Sandstrom assegura que falar com estranhos nos ajuda a conhecer coisas novas de uma forma que não conseguimos com quem nos é familiar
Quando a necessidade de ter alguém de carne e osso para conversar aperta, fechar-se no casulo por ser confortável ou porque se perdeu a prática de socializar – as conversas da treta, ou pequenas (“small talk”, na língua inglesa) – não será, portanto, a melhor estratégia.
Gillian Sandstrom, investigadora e professora de psicologia na Universidade de Essex, no Reino Unido, explica a razão: embora nem sempre saibamos como lidar numa situação imprevisível, falar com estranhos ajuda-nos a conhecer coisas novas de uma forma que não conseguimos com quem nos é familiar. Sandstrom valida assim a tese do fundador da antropologia social britânica, Bronislaw Malinowski, no século passado: as conversas informais têm uma função social, que consiste na criação de pontes, de vínculos.
O bom de as conversas serem como as cerejas
Ninguém pode dizer que desconhece a sensação de consolo no vaivém de palavras soltas, umas atrás das outras, no café, no cabeleireiro, no local de trabalho (conversas de corredor). “Eu falo com estranhos, até no metro de Londres (…) admito que, em criança, via os meus pais fazerem-no regularmente e achava isso constrangedor e irritante”. A confissão de Sandstrom, no seu site, e em que muitos de nós se reveem.
A investigadora prossegue: “Era uma tortura, porque demoraria MUUUUITO tempo, mas via que gostavam muito e aprendíamos coisas novas.” Este hábito marcou a sua infância e levou-a a explorar o tema – veja-se a página #Talking2Strangers, no Twitter – e a elegê-lo como tema central do seu trabalho.
A meta-análise envolvendo sete estudos, divulgada no ano passado, e de que a investigadora britânica é coautora, revelou que evitar diálogos com estranhos assenta nos seguintes medos, regra geral, exagerados: de não gostar da conversa, do interlocutor, de si próprio ou, ainda, por falta de jeito e receio dos julgamentos. Contrariar esses cenários internos sombrios passa por “praticar, praticar”. Só assim se consegue atenuar ansiedades relativas à figura que se possa fazer e ao desempenho social (próprio e dos outros) que se fantasia insuficiente ou desajeitado, e ficar mais disponível para conversas fluidas e gratificantes.
Resgatar o contacto humano
Conversar é uma arte que, antes da pandemia, já estava em risco, dadas as vicissitudes da era digital e da transferência do olhar para os ecrãs, em detrimento dos rostos, contribuindo para estados depressivos e as consequências daí resultantes. O alerta foi dado pela investigadora do M.I.T, Sherry Turkle, numa obra que mereceu um artigo assinado pelo aclamado escritor Jonathan Franzen, no The New York Times.
“A solidão é uma causa, não uma consequência, da depressão; quando ela se instala, perde-se a capacidade de relacionamento social empático”, observa Luísa Lima, coordenadora do ISCTE Saúde – Instituto Universitário de Lisboa. A professora catedrática de Psicologia Social reconhece que “os contactos superficiais podem ser uma forma de sair dessa solidão e dos monólogos”, da mesma maneira que fazer parte de um coro, de um grupo de caminhadas ou outra atividade partilhada com terceiros se revela importante para “treinar competências perdidas e restabelecer a ligação com os outros”.
Olhando os estudos que destacam as potencialidades das conversas mais profundas com estranhos, a docente comenta: “Aumentar o interesse da conversa gera reciprocidade e torna a interação mais positiva para ambas as partes, mas não é por isso que vamos ficar amigos e contar a nossa vida, porque é desadequado.”
A crença de que não se deve dar muito troco a desconhecidos numa sociedade em que há pouca gente para conversar acaba por manter a solidão, mas “se nos esforçarmos por ter conversas mais significativas com quem está à nossa volta, se calhar ficamos menos sós”.
Carla Semedo, psicóloga do trabalho e das organizações e docente na Universidade de Évora, destaca a importância das conversas informais na vida das empresas, pois “a partir delas constroem-se relações de proximidade, confiança e coesão, que geram bem-estar e um bom clima de trabalho e facilitam o cumprimento das metas organizacionais”.
Porém, “a tecnologia e o uso das redes sociais no trabalho têm tomado o lugar das conversas informais”. Um exemplo disso: enviar um emoji personalizado como resposta, no lugar da expressão verba, da troca de entendimentos mútuos sem palavras ou, ainda, de discutir uma situação que precisa de ser esclarecida.
As redes sociais permitem-nos evitar situações, retirando-nos delas, mas não sem custos, a começar no distanciamento: “Aos poucos, isto diminui a capacidade de gerir adequadamente as emoções, os conflitos, as diferenças, e de nos envolvermos numa dimensão mais profunda da comunicação.” Uma realidade “particularmente notória e preocupante” que deverá afetar as próximas gerações a ingressarem no mercado de trabalho.
A ser realmente este o cenário do futuro, talvez não seja má ideia começar já a exercitar essa “vontade danada” e restaurar a arte de conversar, nas suas versões superficial ou profunda, enquanto é tempo.