O abraço é forte, sentido e generoso. Carlos Pontes chega de mão dada com a mulher, Alice, a um almoço marcado por Pedro Monjardino, o seu “anjo da guarda”, como lhe chama assim que o vê. “Este senhor salvou-me a vida”, começa por dizer, em jeito de justificação, na atrapalhação típica de quem não sabe bem como falar com aquele que soube da sua condição mais frágil, mas com quem nunca se tinha cruzado.
Estamos num restaurante à beira-mar, em Maputo, e o diretor-geral da Sanitop Moçambique exige que se faça um brinde ao momento. Pedro Monjardino, que não bebe álcool, abre uma exceção porque afinal uma vida foi salva e isso merece sempre celebração.
A história pode parecer complexa, mas Pedro simplifica-a: “Eram umas 22h30 em Portugal, num dia de fevereiro, quando recebo uma chamada do meu irmão da ilha Terceira a dizer que soube por um amigo que trabalha na Sanitop que o diretor-geral dessa empresa em Maputo está em casa com Covid e uma pneumonia associada”, começa por contar. “Nessa altura, as clínicas aqui estavam cheias e não há oxigénio em lugar algum, razão pela qual me pede ajuda”. Nesta altura, o comprometimento pulmonar do gestor rondava os 10%, segundo os exames médicos que a VISÃO consultou.

Pedro Monjardino, que coordenou o processo de vacinação nos Açores e esteve à frente da operação logística que levou dois aviões com ajuda portuguesa para responder ao ciclone Idai, em Moçambique, é um homem da logística. E gosta pouco de não conseguir responder a problemas. “Eu chamo-lho o momento do chamamento. Sinto em algumas ocasiões, como senti depois de falar com o Carlos, que há alturas em que tenho de atuar. Porque se não fizer nada, vai acontecer uma tragédia, seguramente”.
E esse momento aconteceu porque quando ligou a Carlos, que não conhecia, percebeu que o caso era grave – há cerca de um mês tinha perdido um amigo para a Covid-19 e confessa que ouviu na respiração do gestor o mesmo que tinha ouvido na do amigo, pouco tempo antes de morrer. “Decidi ali que o ia ajudar e foi isso mesmo que lhe disse”.
Depois disso, sucederam-se os telefonemas: começou por tentar um amigo que tem uma clínica, mas que não atendeu, e por via de uma colega da Médicos do Mundo conseguiu chegar à fala com Adriano Tivane, médico do Hospital Central de Maputo. Primeiro foi preciso convencê-lo a fazer uma consulta ao domicílio – “A sua situação é precária”, foi o primeiro diagnóstico ouvido por Pedro – depois pedir um orçamento, garantir que o dinheiro não seria problema e passar cerca de um mês a trocar informação entre Portugal e Moçambique via redes sociais.
O grupo ‘Apoio a Carlos Maputo’ juntou no whatsapp médicos, advogados, enfermeiros entre outros que se uniram em prol de uma causa comum: ajudar alguém que nunca tinham visto. Porquê? “Porque era o que devia ser feito”, resume Pedro. “Foi um trabalho de equipa!”.

Adriano Tivane trocava impressões com os médicos que faziam parte do grupo – uns estavam no Continente, outros nos Açores –, enviava relatórios, recebia indicações e receitas, partilhava diagnósticos e prognósticos e acompanhava, com uma enfermeira, o estado de Carlos em casa. Conseguiu-se uma botija de oxigénio e acompanhamento constante, bem como medicação intravenosa logo no dia seguinte ao primeiro telefonema para Pedro.
“Não disse nada a ninguém. Escondi a minha condição dos meus pais – o que foi muito difícil porque falo com eles todos os dias, várias vezes ao dia, e passei a fazer telefonemas muito curtos, só quando me sentia bem para uma conversa rápida”, confessa Carlos. O gestor, de 53 anos, acabou por falar apenas com o mais velho dos seus 5 filhos, todos a viver em Portugal, porque se apercebeu de que as coisas podiam não correr bem. “O Alexandre esteve sempre em contacto com a Alice, a partir desse momento”.

À VISÃO, a mulher de Carlos admite apenas que foram semanas de muita tensão e muita preocupação, e parece preferir não recordar aqueles quase dois meses em que Carlos recuperou lentamente. Ainda hoje o gestor sente no corpo os efeitos do vírus e recorda os dias em que uma caminhada até à varanda de casa o fazia sentir-se como se tivesse corrido uma maratona.
Quando começou a ser medicado, inicialmente, estava já em condições muito débeis, e ao fim de quatro dias de melhorias, a saturação e o ritmo cardíaco voltaram a cair. “Nessa altura deixei de dormir, porque tinha medo de não voltar a acordar”, diz-nos com lágrimas nos olhos.
“Eu sou um homem de fé, e acredito que isso me ajudou, mas ainda hoje acho impressionante um grupo de gente que não me conhecia, e que praticamente não se conhecia, ter-se juntado para me salvar”, diz.
“Carlos, sabe que agora estamos ligados para sempre, não sabe? Isto é pior que um casamento”, atira Pedro com uma gargalhada, enquanto se recosta no banco e aligeira o ambiente. Aqui, Carlos não é o paciente que sentiu que ia morrer e Pedro não é o homem da logística que montou uma minioperação de salvamento em 24h e a um Continente de distância. Hoje, são dois companheiros de viagem que não param de sorrir um para o outro, como se se conhecessem desde sempre.
“Qual confidencialidade médico-paciente? Eu dizia ao Dr. Adriano Tivane para nos mandar os exames todo por Whatsapp. Queria ver tudo”, diz Pedro. É aí que Carlos confessa que só ao fim de algumas semanas percebeu que o seu “anjo da guarda” não era médico, como sempre pensou que fosse.
“Há uma altura em que pergunto qual é a especialidade dele, e só aí é que descubro que afinal é advogado”, diz com outra gargalhada.

Quando se sentam à mesa já estão a combinar o encontro de todo o grupo em Portugal, quando conseguirem estar todos em terras lusas na mesma altura. Há já 8 anos que o diretor-geral da Sanitop Moçambique trocou Braga por Maputo, mas continua a viajar regularmente para o País, onde tem os pais e os filhos. Pedro Monjardino continuará a dividir a sua vida entre os dois países, como faz há cerca de 20 anos.
Da pandemia que ainda nos obriga a ter máscaras em cima da mesa guardam memórias dolorosas como a perda de amigos (comuns) e as dificuldades em viajar. Mas têm o privilégio de poder também contar uma história diferente da de tantas pessoas: a de como a solidariedade, a generosidade – e a Internet – salvaram uma vida, tornando irrisória a distância de mais de 8 mil quilómetros que os separava.