Em momentos de choque como este, infelizmente tão frequentes neste ano de 2020, só consigo socorrer-me do experimentado conselho de Margalit Fox, a jornalista americana que seguiu sempre o mesmo princípio nos mais de 1400 obituários que escreveu, em quase década e meia, para o New York Times: o importante nunca é a morte, mas sim a vida e as circunstâncias extraordinárias em que se viveu. Ao receber a confirmação da morte do Pedro Camacho, camarada de redação e meu diretor na VISÃO, essas palavras ganham ainda mais sentido, perante a memória de alguém que, como testemunhei durante tantos anos, sempre viveu orientado pelo propósito de tentar que, à sua volta, todos estivessem de bem com a vida.
Trabalhámos juntos entre 2001 e 2015 e depressa aprendi que, com o Pedro, nunca uma troca de ideias ou um discussão mais acalorada ficava a meio – pelo menos, por vontade dele. Mesmo a defender os seus pontos de vista, ele era sempre um conciliador nato, disponível para usar o tempo que fosse preciso para discutir ou debater tudo e mais alguma coisa. Perante uma resposta mais brusca ou até com ameaça de se tornar definitiva, o Pedro nunca desistia nem se deixava levar pela intransigência do interlocutor. Paciente, sabia ouvir como ninguém e, em seguida, era capaz de encontrar todos os argumentos para restabelecer o diálogo, procurar pontos de entendimento e aniquilar qualquer tentativa de azedume.
Foi essa genuína e insistente capacidade de diálogo que permitiu ao Pedro ultrapassar, com desenvoltura e de forma marcante, um dos maiores desafios a que já assisti em quase quatro décadas de experiência em redações: suceder, em junho de 2005, ao carismático e imenso Carlos Cáceres Monteiro como diretor da VISÃO, sem se deixar enredar em comparações desnecessárias, conseguindo uma transição tranquila que muitos vaticinaram impossível. Exatamente como, uma década depois, em 2015, com a mesma capacidade de diálogo e uma postura sempre positiva perante a vida, aceitou com tranquilidade sair da direção, colaborar com uma outra transição tranquila e partir para novos desafios profissionais.
Durante os 15 anos em que trabalhámos juntos, e das centenas de edições da VISÃO que fechámos em conjunto (numa direção editorial que incluía também a Cláudia Lobo e a Áurea Sampaio), não me recordo de alguma vez ter ouvido o Pedro dar um grito de irritação ou, sequer, perder a paciência. Do que me lembro, sim, era do seu espírito conciliador, mesmo quando tinha várias pessoas à sua volta a clamarem, cada uma por si, por um título diferente para a capa ou por outros pormenores que, de facto, só ganham relevância quando se está em fecho de edição, e tudo tem uma importância e uma urgência do tamanho do mundo. Lembro-me também que o Pedro nunca se esquecia de dar uma palavra de alento e de motivação a quem prolongava a noitada de fecho, que nesses tempos se estendia, com frequência, pela madrugada fora. Lembro-me até de, tantas vezes, o Pedro se voluntariar para ir buscar uns hambúrgueres para aliviar a fome de quem não podia parar para jantar. E lembro-me de o Pedro fazer sempre tudo isso com um sorriso suave e desconcertante, que era a arma mais visível do seu espírito conciliador e, acima de tudo, a imagem de homem bom que agora todos, justamente, lhe reconhecem.
Como diretor da VISÃO, o Pedro não foi apenas o homem bom e conciliador. Soube, sem alaridos nem vedetismos, estar à altura dos desafios dos tempos, ter a coragem para assumir mudanças e a inteligência para manter equipas unidas, apesar das diferenças inevitáveis entre os membros que as compunham. De uma forma simples e, por vezes, desconcertante, o Pedro praticava um estilo de liderança sempre centrado no esforço coletivo. Não só acreditava que o todo é sempre maior e melhor consoante o empenho das partes que o compõem, como fazia mesmo questão de procurar o contributo de todos na tomada de qualquer decisão – correndo, tantas vezes, o risco de poder ser mal compreendido.
Nos momentos decisivos, perante administrações, tribunais e poderes vários, o Pedro sempre deu a cara por todos, sem resguardos nem hesitações, por vezes até com uma vivacidade e firmeza que contrastavam, em absoluto, com a imagem de conciliador que cultivava dentro da redação.
Nas grandes e nas pequenas decisões, o Pedro sempre foi um fiel defensor do jornalismo livre e independente, ajudando com a sua postura – e, por vezes, com a sua intransigência – a consolidar o prestígio da VISÃO e de todas as suas marcas associadas.
Depois de uma década e meia intensa e quotidiana na redação da VISÃO, eu e o Pedro pouco nos vimos e falámos nos últimos cinco anos – embora cada telefonema ou encontro fortuito terminasse sempre com a promessa de combinar um encontro mais prolongado para um “dia destes”.
Quis o destino, no entanto, que no início de outubro, por causa de um processo judicial antigo da VISÃO nos voltássemos a encontrar, como nos velhos tempos. Fomos para Gaia preparados para resolver o assunto numa manhã, mas os labirintos da Justiça portuguesa retiveram-nos muito mais tempo na margem sul do rio Douro. Acabaram por ser três dias e três noites para retomar o fio à meada, pôr a conversa em dia, falar do passado, mas sobretudo do presente e do futuro, como é “exigência” num reencontro de velhos camaradas. Viemos juntos, no meu carro, no regresso a Lisboa. E despedimo-nos com um “até breve” que, naquele momento, foi genuinamente dito pelos dois como sendo mesmo “breve”.
Foi breve demais, mas pelas piores razões. Uma semana depois da nossa viagem de automóvel, o Pedro telefonou-me para me avisar que estava doente, com sintomas de Covid-19. E se o vírus, a mim, só me acertou de raspão, a ele apanhou-o em cheio.
Socorro-me novamente do conselho de Margalit Fox e tento concentrar-me na vida do Pedro e não na morte. E acabo, inevitavelmente, por o recordar como o homem bom e justo que tentou sempre encarar os desafios, incertezas e preocupações com o mínimo de conflitos e de atritos. O homem que falava com um orgulho comovente sobre os filhos e a família, que tinha uma predisposição natural para se concentrar nas alegrias e não nas agruras da vida.
Para quê desperdiçar tempo e energia em conflitos se a vida é tão curta?, parecia questionar tantas vezes o Pedro nas suas tentativas de conciliação, a usar sabiamente a sua longa e proverbial capacidade oratória, que parecia ininterrupta. O Pedro teve sempre razão – mesmo sem saber que a sua vida, injustamente, iria ser tão curta.