1. “Essa Gente”, de Chico Buarque
Chico Buarque tem longa militância feita em muitos versos cantados. Poucos se surpreenderiam se o cantor, compositor e autor escrevesse uma ficção contundente que contemplasse o país polarizado que emergiu após a eleição de Jair Bolsonaro – sobretudo depois da polémica sugestão de recusa do atual Presidente em assinar o diploma do Prémio Camões e a resposta do cantor, que a caracterizou como “um segundo Prémio”. Essa Gente prefere a proverbial e elegante bofetada de luva branca: Chico experimenta com a forma, coloca a ação nas entrelinhas, esparrama-se na ironia, usa vocabulário solto, dengoso e vernacular.
O novo romance é um diário estranho e polifónico, com capítulos curtos arrumados como entradas ou cartas datadas entre dezembro de 2016 e setembro de 2019. O protagonista é Manuel Duarte, autor de um celebrado O Eunuco do Paço Real, e nunca mais visitado com igual vigor pela musa. Cercado por dívidas, tentações de ex-mulheres, muito sexo e “prostatite aguda”, é um “observador impassível” de uma realidade conturbada. “Não bastassem os perrengues pessoais, ficou difícil me dedicar a devaneios literários sem ser afetado pelos acontecimentos recentes no nosso país”, escreve ele ao editor. Maria Clara, primeira mulher e mãe do seu filho pré-adolescente, faz eco dessa realidade: “Laila acredita que o ambiente no país em breve se tornará insuportável para gente de esquerda como ela e intelectuais em geral como eu”, escreve, antes de se mudar para Lisboa. Duarte faz a via crucis da crise pessoal, e Buarque pontua-a subtilmente com cenas (sur)reais: o crioulo, que passeava os cães do bairro, morto por agentes da polícia que tiram selfies de seguida; jovens pobres castrados pelo interesse de um maestro nas suas “vozes angelicais”; o seu filho, associado a famílias de esquerda, a ser assediado na escola privada… Valeu? Valeu.
2. “A Luz de Pequim”, de Francisco José Viegas
Começa como um travelling pela paisagem nortenha, marcada por uma nostalgia que, como chuva, alastra pelas páginas: há os lugares seculares invadidos por turistas; um dicionário Cândido de Figueiredo nas instalações da Polícia dirigidas pelos que “tomaram conta disto” com iPhones e teorias reluzentes; há comunistas do “velho Partido” a assumirem derrotas ideológicas e a riscarem últimas tarefas da lista existencial; há um Porto devastado por drogas e tiques que faz o inspetor Jaime Ramos suspirar pela antiga cidade que talvez só tenha existido na sua imaginação. A Luz de Pequim (Porto Editora, 400 págs., €17,70) tem vários crimes (corpos pendurados em pontes, filhos desaparecidos, identidades roubadas…) mas é, sobretudo, uma bela e crepuscular investigação sobre o envelhecimento e os balanços possíveis, sobre o continuar a viver. Beckett é evocado: “Agora só me resta falhar mais, falhar melhor, falhar de novo, até não haver hipóteses de falhar nunca mais.”
3. “Discursos”, de Mark Twain
Quem nunca leu As Aventuras de Tom Sawyer (1876) merece castigo. Mais perdoável é o desconhecimento de Mark Twain (1835-1910) como grande orador, tido como o maior humorista do seu tempo, precursor do stand-up comedy: charuto na boca e timing perfeito, entrava no palco com “um semblante em que se lia um grande desalento”, descrevia o Toronto Globe, em 1884, e “desatava a disparar piadas arrasadoras”, recorda o ator Hal Holbrook. Era um “ator de mão-cheia” que “estudava cada palavra”, segundo o amigo W.D. Howells. Ambos assinam prefácios em Discursos (Tinta da China, 408 págs., €24,90), reunião das 103 pérolas de ironia em que Twain discorre, por exemplo, sobre o orgulho nos pioneiros do Mayflower desembarcados em Plymouth, durante um jantar formal na orgulhosa Nova Inglaterra: “Estava um frio de morte para aquelas bandas, ao largo de Cape Cod. Porque é que eles não haviam de desembarcar?” E sobre direitos das mulheres (“Ocorre-me dizer que a mulher tem sempre razão”), o seu 70º aniversário (“Alcancei os meus 70 anos do modo habitual; adotando rigorosamente uma rotina que mataria qualquer outra pessoa”), larápios de livros, osteopatia, Joana d’Arc ou os “tormentos da língua alemã”… Os Monty Python não fariam melhor.
4. “I’m Your Man”, de Sylvie Simmons
“Sem a tolerância, a confiança, a sinceridade, a generosidade e o bom humor de Leonard Cohen, este livro não seria o que é”, avisa a autora. Este exaustivo I’m Your Man – A Vida de Leonard Cohen (Tinta da China, 616 págs., €27,90), de 2012, é obrigatório para quem admira a obra do músico canadiano desaparecido em 2016 e não tem receio de o ver ao perto.
5. Obra Poética [1948-1995], de David Mourão-Ferreira
Fora da Obra Poética (Assírio & Alvim, 808 págs., €44) organizada por Luís Manuel Gaspar, ficaram, por exemplo, os versos juvenis. Ausência sem peso nesta longa viagem, por vezes em ritmo de haikai, pelos temas da memória, tempo, erotismo: “Nada menos efémero / que uma taça e um ceptro / no deserto.”