Tudo se encaixa quando ouvimos Vanessa Campos falar da menina “vestida de Branca de Neve dos anos 70” que viu há uns tempos em Moçambique. Uma só frase e percebemos por que razão lhe é tão difícil olhar um vestido como uma coisa fútil. “Imagina uma criança que nunca teve uma roupa nova? Estas meninas não estão de fadas ou de Frozen porque querem, foi o que sobrou para elas, o lixo.”
Nesse dia, Vanessa encontrava-se novamente em Maputo, onde tinha ido entregar mais uma remessa de vestidos e calções costurados em Portugal. Sabia que se surpreendia sempre que saía em missão – se não fosse ali, seria noutro país africano; se não fosse em África, seria noutro continente qualquer – mas aquela Branca de Neve ficar-lhe-ia para sempre na memória, como um aviso.
Numa outra vez, contará de seguida, cruzou-se na rua com uma mulher que levava ao colo uma menina de uns dois ou três anos, enfiada num saco do lixo com aberturas para as pernas. E não é importante sabermos onde viu essa criança com um “fofo” feito de saco, diz a fundadora da associação Dress a Girl Portugal. “Lembro-me que foi em Luanda, mas o importante”, sublinha, “é dar dignidade e esperança a todos estes meninos.”
Estamos no ateliê Rosapomposa, em Telheiras, que nos últimos dias tem andado num corrupio. Quem mora ou trabalha perto da sede não-oficial da Dress a Girl, em Lisboa, já se habituou a ver mulheres a entrar e a sair daquelas traseiras da Rua Professor Alfredo de Sousa, quase sempre carregadas de sacos. Por causa do mercado de Natal que assentou arraiais na FIL (entre 4 e 8 de dezembro), no Parque das Nações, o habitual entra-e-sai ainda é maior.
Milhares de peças de roupa por mês
Aos sacos cheios até cima com vestidos e calções, à espera de serem distribuídos algures no mundo, juntaram-se todas as coisas que as voluntárias da associação costuraram para ajudar a angariar fundos para as missões. A Dress a Girl Portugal é uma entidade sem fins lucrativos, e um dos seus desafios neste momento é fazer chegar a roupa aos meninos o mais rapidamente possível.
Desde julho de 2016, mais de 53 mil crianças carenciadas de 28 países, dos cinco continentes, receberam um vestido ou uns calções costurados em Portugal. Os dados são de agora, de dezembro. Foram mais de 50 mil meninos que ficaram menos tristes em três anos e meio, alegra-se Vanessa Campos e também as outras duas coordenadoras do projeto, Joana Nobre Garcia e Ana Bragança. Mas já seriam muitos mais meninos se houvesse mais dinheiro disponível para gastar em viagens. “As pessoas acham romântico não pedirmos dinheiro, mas querem que façamos magia”, ri-se Vanessa.
Pode ser que dentro de pouco tempo a associação tenha novamente o apoio da TAP, que no início do projeto convidou os passageiros a doarem milhas. “Já soubemos que a TAP vai abrir concurso e nós vamos apresentar a nossa candidatura, é a primeira coisa que faremos no dia 1 de janeiro”, conta Joana. Mas o stresse é tão grande que, pela primeira vez, as três coordenadoras e amigas decidiram avançar com uma campanha de angariação de fundos clássica, com NIB e tudo (PT50 0033 0000 4553 3531 063 05).
Não dá para ficarem sentadas à espera. “Ainda agora levámos para Angola 1 600 peças, mas temos ali mais um monte de sacos”, aponta Joana. “Recebemos milhares de peças de roupa por mês e não conseguimos escoá-las. E a responsabilidade que é entregar o vestido que fez a D. Alzira, de Freixo-de-Espada-à-Cinta?! Porque o objetivo de fazer um vestido é ele ser entregue, e, quando ele aqui chega, é quando começa tudo.”
Bastam 75 cm por 1 m de tecido
Já lá vamos ao “tudo”. Aproveitemos agora a referência a uma hipotética D. Alzira para falar das voluntárias, no feminino porque 99% são mulheres. E faz sentido que sejam – o Dress a Girl Portugal é um projeto de acolhimento de mulheres. “A nossa missão cá é tirar as senhoras da solidão e dar-lhes um motivo para viver”, diz Vanessa. “Como somos mulheres de resultados, a nossa ambição é que o projeto seja efetivamente uma terapia para mulheres em Portugal.”
As voluntárias são sobretudo mulheres com mais de 60 anos, mas também têm algumas crianças voluntárias. A mais nova chama-se Joana Garcia, tem 8 anos, mora no Ribatejo e já costurou quatro vestidos. E o retorno tem sido muito bom. Num encontro promovido em maio, na Murtosa, aproveitou-se para realizar um inquérito e as respostas não deixaram margem para dúvidas: as voluntárias estão satisfeitas com projeto porque se sentem úteis e ativas.
O Dress a Girl é um projeto cujo sucesso se deve muito à formação das três coordenadoras: Vanessa trabalhou toda a vida no mercado financeiro, Joana é economista (e autora de livros de costura) e Ana é engenheira. “Não somos três costureirinhas doidas”, ri-se Vanessa. “A gente não vai mudar o mundo. A gente quer tornar o mundo um pouco melhor, mais alegre. É um projeto de paz e amor, não é para chatear ninguém.”
Vanessa Campos morava nos Estados Unidos quando ouviu falar da associação Dress a Girl Around The World, fundada por Rachel Eggum Cinader, em 2009. Foi Rachel quem a incentivou a ser embaixadora do projeto em Portugal, ao saber que ia mudar-se para cá. Vanessa hesitou porque não conhecia ninguém no País, receou que olhassem para ela “como mais uma brasileira doida”, admite. Um ano e meio depois, já com a Joana e a Ana, começou a ver frutos a sério. “Foi quando avançámos com a associação”, conta. “Aí, as pessoas começaram a doar tecidos.”
O facto de ser uma associação permite que as fábricas doem tecidos. “Ainda não conseguimos que uma nos faça uma entrega regular, por exemplo uns 200 metros do que sobrar”, lamenta Ana. “Nós só pedimos as sobras porque 75 cm por 1 metro de tecido dá para fazer um vestido de tamanho M, ou seja bom para uma menina de 6 a 10 anos.”
23 quilos de bagagem = 150 crianças vestidas
Nos EUA, o projeto organiza peditórios, cobra os kits e as etiquetas com o logotipo. E não inclui calções, algo que Vanessa, Joana e Ana rapidamente perceberam ser muito injusto. “De início, quando levávamos apenas vestidos, os meninos ficavam tristes”, recordam. De Portugal, além dos vestidos e dos calções, vão sempre cuecas.
A dimensão é outra, também. Em maio, Rachel Eggum Cinader veio a Portugal e ficou estarrecida – a produção anual nos EUA é de apenas 600 vestidos.
Em Portugal, não é por serem muitos os sacos e os embrulhos a chegar ao ateliê Rosapomposa que se dispara em todas as direções. “Não temos pressa de entregar, só a quem conhecemos. Vestimos a criança, dizemos-lhe: O vestido ou os calções são teus. Não queremos que sejam vendidos em mercados”, conta Joana. E o momento da entrega é fotografado, para dar retorno às voluntárias, a não ser quando as crianças estão, por exemplo, num serviço de oncologia, a fazer quimioterapia.
O peso da bagagem é quase sempre um drama, por isso a associação conta com a boa vontade de voluntárias e anónimos. No Rio de Janeiro, em Maputo ou em Luanda, há pessoas que podem passar no hotel e tratar da distribuição. Noutras cidades, procura-se uma solução. A ideia é não perder nenhuma oportunidade de distribuir mais umas peças de roupa. “Uma mala com 23 quilos são 150 crianças vestidas”, exemplifica Vanessa.
Por estes dias, há voluntárias a entregar roupa em São Tomé e na República Centro Africana. E, até ao Natal, Joana quer ir a Cabo Verde, entregar 350 peças de roupa a uma escola da diocese de Mindelo. Deverá ser um toca-e-foge, nada que a aflija. “A última vez que lá estivemos, distribuímos mais de mil vestidos em apenas 48 horas”, recorda Ana. “É uma missão mesmo.”