Em Portugal é permitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas quando planeiam ter filhos, veem-se obrigadas a fazer malabarismos para contornar a proibição a que estão sujeitas. Referendos à parte, as famílias arco-íris existem – e vão continuar a existir. Só querem tornar-se legais
Há abraços que valem muito mais do que referendos ou discussões parlamentares. Ou então convençam Miguel, de 8 anos, que Pedro Mata, para o pescoço de quem acaba de saltar, depois de um saudoso «paaaii», no final de um dia de atividades escolares, não lhe é rigorosamente nada, aos olhos da lei portuguesa. Há três anos que Miguel vive com dois homens, a quem chama pais. Antes, estivera numa instituição, porque a Segurança Social o encontrou em condições impróprias, na casa da família biológica.
Pedro, 52 anos, médico, e Jorge Cabral, 43, fotojornalista, unidos de facto desde 2007, sempre quiseram constituir uma família. Descobriram que talvez o conseguissem, através da adoção monoparental. Candidataram-se ao mesmo tempo, mas separadamente, e em concelhos diferentes. O processo de Jorge desbloqueou mais depressa e, em seis meses, foi dado como apto para adotar. Sozinho.
Menos de um ano depois, com muitos livros lidos sobre adoção e homoparentalidade, Jorge pôde conhecer, pela primeira vez, Miguel. Primeiro foi visitá-lo à instituição, mais tarde levou-o a passear e, só depois, a conhecer a sua casa. Foi nessa altura que surgiu o segundo pai, com um enorme saco de maçãs a fruta preferida de Miguel para o lanche. O menino aceitou-o de imediato.
Assim nasceu esta família, apesar de ainda não poder existir legalmente. No Cartão de Cidadão de Sérgio Miguel Cabral só consta o nome do pai Jorge.
Universitários com preconceito
Quando um casal de homossexuais decide ter filhos, não pode continuar no armário. Há que assumir-se perante os filhos e a restante família. E na rua, na escola, no centro de saúde, no gabinete do pediatra. A experiência de Pedro Mata e Jorge Cabral mostra que a sociedade está apta a integrar os filhos destas uniões, até porque são exatamente como os outros. Só no Dia do Pai é que Miguel tem trabalho a dobrar, na escola…
Mas a tese de doutoramento sobre homoparentalidades, num contexto heteronormativo, do psicólogo Jorge Gato, chegou a conclusões diferentes da prática do dia a dia desta família. «Apesar de cerca de 40 anos de investigação psicológica terem evidenciado, sobretudo, semelhanças entre as práticas parentais de lésbicas/gays e as de heterossexuais, e ainda entre os índices de adaptação psicológica de crianças educadas em contexto homoparental versus heteroparental, constata-se que o preconceito subsiste», nota o especialista.
Inquiridos sobre o assunto, estudantes universitários (especialmente rapazes) mostraram receio de que uma criança adotada por um casal do mesmo sexo venha a apresentar um desenvolvimento psicossexual não normativo. «Destacou-se também uma maior preocupação com a aquisição de comportamentos tradicionalmente masculinos de um rapaz educado por duas mães, o que salienta uma maior preocupação com a ‘masculinidade’ nos meninos, do que com a construção da ‘feminilidade’ nas meninas. Embora a crença de que a orientação sexual das mães e dos pais influencia a identidade sexual dos filhos seja infundada do ponto de vista científico, este ‘receio’ de caráter, em si mesmo preconceituoso, parece ser um dos fatores subjacentes à apreensão que a adoção por estes casais ainda suscita em Portugal.»
A ciência aprova
O pediatra Mário Cordeiro, 58 anos, nem assim entende a apreensão. «Há uma meta-análise de mais de 700 estudos que evidencia não haver qualquer diferença. Até existem investigações que mostram terem as crianças educadas por lésbicas menos tendência para exercer bullying e serem violentas no dirimir de conflitos.» O argumento do contranatura também cai por terra, ouvindo o especialista em doenças infantis: «Produzir sociedade é ler o tecido social, as regras e normas, dar saltos civilizacionais no sentido de abater tabus, de acabar com discriminações e, sobretudo, fazer essas alterações com base nos estudos científicos e não em argumentos do estilo ‘parece-me que…’.» Mário Cordeiro resume, por isso, o que os estudos mostram: «1. Não se fica gay por viver com gays (então, os atuais gays são filhos de quem?). 2. Não é contranatura porque a ‘natura’ é, exatamente, mudar a sociedade. Se não fosse assim, não usávamos óculos, não tínhamos eletricidade, não aquecíamos as casas, não nos vestíamos. 3. Não há qualquer diferença entre ser educado por casais hetero ou homossexuais do que as crianças precisam é de ser amadas, educadas, ensinadas, no sentido dos direitos e dos deveres, da autonomia e da responsabilidade, do rigor e da ética.» É caso para perguntar: Há algum estudo que prove o contrário? «Não, porque a ciência, a verdadeira ciência pediátrica e psicológica, não é imoral, indecente, subjetiva e discriminatória, mas sim ética, correta, rigorosa. E os resultados são os resultados, não a tese que queremos provar.»
‘Que las hay, las hay’
Mesmo que ainda exista quem ignore as evidências científicas e insista no preconceito, as famílias há muito que já não são apenas tradicionais. Até o Instituto Nacional de Estatísticas, desde o Census de 2011, reconhece a «diversidade mais acentuada das formas de viver em família», tanto na conjugalidade (casamento de direito/de facto, religioso/civil), como na parentalidade (há mais famílias monoparentais e recompostas).
Portugal é o único país da Europa em que gays e lésbicas podem casar-se mas que ainda não têm direitos de parentalidade dentro do casamento ou da união de facto. A uma pessoa homossexual portuguesa a lei reconhece-lhe a possibilidade de adotar desde que seja solteira. As técnicas de reprodução medicamente assistida estão vedadas a lésbicas e mulheres solteiras. Só que a vida não pára. À margem de um ordenamento jurídico que devia protegê-las, nascem e crescem famílias com todas as cores do arco-íris.
É esta hipocrisia, do fingir que núcleos como o seu não existem, que desespera Fabíola Cardoso, 42 anos, professora de Biologia. No ano passado, esta mãe (tem dois filhos, de 12 e 10 anos) escreveu uma carta aos deputados, a partir de uma cama de hospital, no seguimento de um internamento causado por complicações numa sessão de quimioterapia, a que foi sujeita depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro na mama. Nessa altura, pedia apenas que os seus filhos fossem protegidos, na hipótese de a doença a matar. «Trata-se de reconhecer famílias que já foram constituídas e vão continuar a constituir-se, independentemente do que decida o Parlamento.»
Esperança Constitucional
João Paulo, 45 anos, editor do site Portugal Gay, sabe que «os senhores que legislam desconhecem a realidade e não são eles que vão explicar a uma criança que, se acontecer alguma coisa ao pai/mãe, o outro adulto que é da família não conta, e ela terá como destino uma instituição.» O pediatra Mário Cordeiro corrobora esta tese: «Se uma criança vive com um casal de homens ou de mulheres há dez anos, e tem o azar de um deles morrer, não acho normal que a entreguem a uma instituição; ou a pessoa que cuida dela, que a leva à escola, lhe dá amor e mimo, a ensina, a educa e a ama, não poder ficar no hospital, quando ela está internada.» Quando, em maio de 2013, a coadoção foi aprovada na generalidade (ver caixa), Margarida Moz, 43 anos, investigadora da área da antropologia, considerou que se tinha levado em conta o reconhecimento dos direitos das crianças. Mas com o passo seguinte a dar-se na direção contrária, com uma proposta de referendo acerca do assunto, insistiu que «era urgente assumir e regulamentar as situações existentes, sem remeter as famílias à clandestinidade, dando-lhes, antes, proteção legal e facilitando-lhes a vida». O que deve importar é, sobretudo, a qualidade das relações familiares, e menos a forma que elas assumem.
Na opinião desta antropóloga, «no caso da adoção propriamente dita, a hipocrisia continua. Veja-se o caso do cabeleireiro Eduardo Beauté e do companheiro, que estão aptos a cuidar de uma criança com síndroma de Down, que requer cuidados especiais, mas, legalmente, não o estão para adotar», nota Margarida Moz. «Também ninguém critica o facto de o filho do futebolista Cristiano Ronaldo não ter mãe, porque tem a família Aveiro.» Há ainda a situação do ator Diogo Infante – adotou, sozinho, uma criança, e a seguir, casou-se. Se o ator tiver algum contratempo, o marido não tem direitos em relação àquela criança, nem pode protegê-la ou qualquer dos seus familiares diretos.

Os avós de Matias há muito que querem sê-lo também de papel passado
José Caria
A voz aos avós
«Ó ‘bó, olha!» Na sala de estar de Onélia e Rogério Morgado, 67 e 78 anos, é uma alegria fazer parte do universo e das brincadeiras do Matias, que os interpela com entusiasmo, rodeado de brinquedos e mimos.
Desde os seis meses que o neto, agora com quase três anos, dá mais vida à residência de Campolide. Matias já frequenta a creche, mas é presença assídua na casa dos avós, ambos reformados. E um pilar essencial na vida do casal de mães, Marta Morgado, 37 anos, e Mariana Martins, 39 (a que consta no Cartão de Cidadão da criança).
«Os meus sogros estão muito presentes na vida do nosso filho, ainda que não sejam legalmente reconhecidos», esclarece Mariana.
Existem mais duas bisavós, três avós, quatro tios-avós, três tios e dois primos (a maioria do lado de Marta, sem vínculo legal a Matias).
«O meu pai era muito exigente comigo, mas ao neto deixa fazer tudo», brinca Marta. «Isso é uma farsa.» Os avós referem-se ao direito que lhes é negado pela lei, mas exemplarmente exercido «desde a fase da gravidez», como frisa a nora. Preocupa-os, a todos, a eventualidade de acontecer alguma coisa à Mariana, ou ao menino, e ficarem de mãos atadas. Contudo, a família resiste, concentrando-se nos desafios quotidianos, como a viagem programada a São Tomé, por motivos profissionais. Já está decidido: «Os avós do Matias irão connosco, porque não somos só três.»

Uma família arco-iris que passa agora a ser totalmente reconhecida pela legislação portuguesa
ALVARO ISIDORO
Abertos à mudança
Oshadi e Siboney são gémeos. Nasceram da barriga da holandesa Frida Kruijt, 42 anos, mas têm a cor da pele e o cabelo igual ao da outra mãe, a porto-riquenha Margarita Sanchez, 58. São nove da manhã e é com elas que percorrem, ora a pé, ora ao colo, o caminho até à creche. Quando saem para a rua com os gémeos, cumprimentam a vizinhança, que se foi habituando a este modelo, entre tantos outros que a sociedade foi conhecendo. «O que constitui uma família é o amor e a solidariedade», lembra Frida, a trabalhar na Amnistia Internacional.
O casal oficializou a relação em Amesterdão, mas o processo de inseminação artificial decorreu em Londres, em 2009, com a assinatura de ambas as mães. Aliás, esperaram que se aprovasse uma lei para poderem garantir todos os direitos aos seus filhos, que estão registados com os seus dois nomes. O passaporte deles é holandês, por isso duvidam que a Justiça portuguesa possa fragilizar, seja como for, a família.
«Sabemos que os nossos filhos vão sempre ter uma carga, num meio que descrimina, mas a culpa não é nossa. O que fazemos é dar-lhes todas as ferramentas para lidarem com as situações mais delicadas», acrescenta Margarita, pastora da MCC Church, formada nos EUA por um gay expulso de outra congregação, devido à sua orientação sexual.
Frida e Margarita estão a ponderar seriamente ficar por cá. A sociedade tem tido, com elas, uma atitude inclusiva da escola ao centro de saúde. «O coração dos portugueses é aberto à mudança.» Mas só hoje, dia 20 de novembro, essa abertura se concretizou na Assembleia da República, numa votação a favor da adoção de crianças por casais do mesmo sexo.