O novo filme de Miguel Gomes, Grand Tour, chega nesta quinta-feira, 19, às salas de cinema portuguesas transportando já uma aura especial. Foi com ele que o cineasta ganhou o prémio de melhor realização no mais prestigiado festival de cinema do mundo, Cannes. Recentemente, soube-se que foi o escolhido como candidato português a uma nomeação para o Oscar, na categoria de melhor filme internacional e os seus direitos de exibição já foram vendidos para mais de 60 países.
Dizer que Grand Tour conta a história de Edward (Gonçalo Waddington), funcionário do império britânico na Ásia, em 1918, que decide escapar, de forma impulsiva e sem destino, ao casamento iminente com Molly (Crista Alfaiate), acabada de chegar àquelas paragens orientais, pode sintetizar a narrativa do filme, mas diz muito pouco sobre ele. Esta coprodução internacional resultou de filmagens em vários países asiáticos e também em estúdio (em Roma e Lisboa): “Dois polos opostos no registo para cinema”, sublinha o realizador. O resultado final mostra como Miguel Gomes é hoje um cineasta singular e absolutamente livre.
O filme tem cenas filmadas em estúdio, à antiga, e outras registadas numa viagem por vários países asiáticos, misturadas… Foi tudo muito planeado ou a montagem final é fruto de uma grande liberdade criativa?
O trabalho de estúdio foi mesmo old school, passava muito pela construção de cenários; hoje, filma-se muito nos estúdios já a pensar no digital. Aqui, a ideia era mesmo entrar numa espécie de mundo paralelo do cinema, onde é preciso inventar tudo, a começar pela luz. No fundo, estamos entre quatro paredes. E, sim, a ideia era juntar, neste filme, dois polos opostos no registo para cinema: a captação do real e a construção de um mundo artificial.
De início, durante a rodagem nesses dois polos, já era muito clara a ideia dos modos e tempos em que as imagens iam entrar no resultado final?
Havia a decisão de que teríamos que começar por filmar o real. E iríamos reagir a ele… No fundo, estávamos a colecionar uma série de momentos que filmámos pela Ásia fora: paisagens, rituais, ações… Chegados a Lisboa começámos a montar e, então sim, a escrever o argumento do filme, reagindo a sequências que já tínhamos filmado no Myanmar ou na Tailândia. O desafio era, também, cruzar dois tempos, o do mundo contemporâneo e o dos atores em estúdio, numa história passada numa certa época, em 1918, sem perder os personagens de vista. A narração em off ajuda a essa continuidade. Por outro lado, também queria respeitar a descontinuidade natural que existe ao fazermos este tipo de escolha. Agrada-me a ideia de que as pessoas estão a ver não um filme mas dois filmes ao mesmo tempo. Quis inventar um tempo de cinema único, a partir de mundos e tempos históricos diferentes.
Nessa viagem pela Ásia partiam, então, de uma espécie de gozo um bocado selvagem de filmar livremente, de fazer cinema sem obedecer a um guião…
É o que nós chamamos “caçar borboletas”.
No comité central.
Sim. E qual é o critério aí? Coisas que nos deem prazer filmar. Podem ser divertidas, bonitas, comoventes… O mundo é incrível. O “comité central”, e já o apresento assim desde o Tabu [de 2012], é um grupo de pessoas composto pelos argumentistas [além de Miguel, Mariana Ricardo, Telmo Churro e Maureen Fazendeiro]. Há sempre momentos em que aquilo que vamos filmar não corresponde ao argumento que tínhamos escrito. Muitas vezes, isso acontece por falta de dinheiro para filmarmos o que queríamos… Nessas alturas, não paramos para reescrever, mas reformulamos o filme.
Uma espécie de fuga em frente…
Acho que é uma maneira muito prática de fazer cinema. Filmo uma cena num dia, e no dia seguinte acho que aquilo faz mais sentido de outra maneira… É bom não estar sozinho a pensar nestas coisas e ter um comité central.
A viagem do comité central pela Ásia foi feita de seguida ou com regressos a Portugal pelo meio?
Foi feita já há quatro anos, durante cinco semanas, no início do ano da pandemia, 2020. Na parte final fomos de Myanmar para o Japão e estávamos em Osaka, prontos para apanhar um ferry para a China, precisamente para perto de Wuhan… Estávamos no início da pandemia, em fevereiro, e foi tudo suspenso. Regressámos a Lisboa, esperando voltar ali rapidamente, o que não aconteceu… Só em 2022 filmámos a parte da China, mas não nos deram autorização para entrar, porque tinham a política de Covid zero. Perdi a paciência e decidi avançar à distância, contando com o produtor chinês e tendo uma equipa 100% chinesa. Fiquei numa casa ao pé do Areeiro, com o assistente de realização, uma das argumentistas e a Filipa [Reis], da produção. Tínhamos uma série de monitores, com a imagem da câmara na China, outro ligado ao telefone do assistente de realização chinês… E por causa da diferença horária trabalhávamos ali, remotamente, entre a meia-noite e as oito da manhã. Surpreendentemente, o método acabou por funcionar… Foi a rodagem mais surrealista da minha vida.
[Excerto da entrevista a Miguel Gomes publicada na VISÃO Se7e desta semana]