Três fotografias, duas pinturas, duas esculturas. O silêncio é cortado apenas pelo som de pedaços de madeira a estalar sob o peso dos passos de quem entra e se aproxima de uma fotografia que retrata uma cirurgia ao coração. Coração aberto, coração em chamas, coração vivo e morto ao mesmo tempo, coração nas mãos, de quem opera, de quem é operado, de quem espera para saber se fará luto ou festa.
Perante a obra, carregada de cor, de sangue, de vida, torna-se quase impossível não pensar também na morte, no facto de esta se encontrar já presente em todas as coisas nas quais os seus dedos ainda não tocaram. E é esta consciência, que molda a forma de viver de quem a tem, que Abalo, exposição da fotógrafa Matilde Travassos e do artista plático Manuel Tainha, celebra.
Os artistas procuraram criar um memento mori constante de uma morte que é perda, não necessariamente da vida biológica, mas de uma parte de si mesmo. A morte enquanto fim de um ciclo, sucedido de um inevitável período de luto, durante o qual cada um trava as lutas necessárias para atingir uma espécie de ressurreição indispensável a todos os que querem seguir vivos na vida.
Cada ressurreição é única, irrepetível, profundamente relacionada com a causa de cada uma das pequenas mortes que, fazendo de nós mais humanos, simultaneamente revelam-nos forças sobre-humanas que tantas vezes nem sabíamos ter.
O caráter irreplicável, quase sagrado, de um momento fugaz, mas intenso, bem como “a tentativa constante de congelar processos intermédios” e “agarrar a ideia da memória, revivê-la”, encontram-se espelhados nas obras de Manuel Tainha.
Por exemplo, a escultura Figura 5 ilustra o exato instante no qual o alumínio reage ao fracasso da extrusão, um processo de transformação da forma a quente e a elevada pressão. Na pintura Perséfone, tirando partido da aleatoriedade com que o pigmento cai, o artista representa o processo de secagem, momento que, por norma, a pintura não consegue fixar.
Já Matilde Travassos, ao “meditar sobre a morte”, criou fotografias que dão corpo às duas maneiras primordiais de encarar a questão. A imagem de uma carpideira de Portalegre mostra a dor, o choro, a perda, o sofrimento e o luto de quem fica, enquanto que uma serpente morta no chão ou o registo de uma operação ao coração dão forma ao medo do perigo, que levou a fotógrafa a viver a vida “correndo menos riscos, mas de uma maneira mais presente do que no passado, aproveitando cada momento”.
A energia dos sítios é essencial para criar exposições. Por exemplo, Abalo só faria sentido em Évora. É preciso perceber que Portugal não é só Lisboa e a importância da descentralização da cultura
matilde travassos e manuel tainha
Ambos os artistas, que acreditam que “a energia dos sítios é essencial para criar exposições”, defendem que Abalo “só faria sentido em Évora”, cidade que a acolhe, sublinhando o facto de Portugal “não ser só Lisboa” e enfatizando a importância da descentralização da cultura.
Em Évora, Manuel e Matilde encontraram não só inspiração artística, da Capela dos Ossos ao Cromeleque dos Almendres, mas também a Galeria Plato. No espaço dirigido por Diogo Ramalho, as esculturas, pinturas e fotografias de Matilde e Manuel abrem espaço a um diálogo silencioso e delicado entre o observador e a sua própria vida.
Defronte a uma tela destinada a modificar-se ao longo dos anos ou à imagem de um coração aberto, percebemos que, na tentativa de evitarmos a morte, acabamos, tantas vezes, por nos limitarmos a resistir à vida. A eternidade não pertence a qualquer tempo ou espaço, a nenhum objeto ou pessoa, logo, não a possuímos nem a perderemos, fazemos já parte dela.
Galeria Plato > R. do Lagar dos Dízimos 4, Évora > T. 91 993 7174 > ter-sex 14h-19h > até 26 de abril > grátis