Juliana passa as mãos com carinho no corpo deitado na cama. “As pessoas precisam de ser tocadas”, diz. Fala pausadamente, num tom reconfortante de quem trata de doentes em fase terminal. Tem 76 anos, nasceu em Pemba, Moçambique, veio para Portugal no final de 1991. Com Ya Ya, Maria, Nzaji, Emanuelle, Fabi, Eliane e Nádia é uma das oito mulheres imigrantes, com idades entre os 30 e os 70 anos, que trabalharam nos últimos três meses com Marco Martins em Pêndulo.
Neste espetáculo, o realizador e encenador volta a um tema a que se tem dedicado: o trabalho. Foi assim com Estaleiros, feito com os trabalhadores de Viana do Castelo; Baralha, no seio da comunidade cigana de Sanguedo; Provisional Figures, a partir de um grupo de emigrantes de Great Yarmouth, Inglaterra, ou Selvagem, com caretos transmontanos e sardos.
Pêndulo, resultado de um convite da Artemrede, que opera em 18 municípios à volta de Lisboa, teve estreia no Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro. Falámos com Marco Martins, antes da apresentação do espetáculo no Teatro São Luiz, em Lisboa, neste fim de semana, de 16 a 18.
Como foi o processo de criação de Pêndulo?
É sempre um processo relativamente longo. Começou há seis meses, com a procura do elenco. De um grupo de 18 mulheres, chegámos a estas 8, com quem temos estado a trabalhar nos últimos três meses, no Clube Desportivo da Lomba, no Barreiro. Essa procura é sempre feita da mesma maneira, pelo José Pires, que trabalha comigo desde o Estaleiros, preferencialmente com entrevistas de rua, nas paragens de autocarro, em cafés, ou por indicação dos municípios. Depois de escolhido o grupo, há um período de trabalho que compreende vários workshops – neste caso, de escrita, com a Djaimilia Pereira de Almeida; de música, com os Tia Maria; e de movimento com a Vânia Rovisco – em que se vai criando uma espécie de vocabulário e vários tipos de materiais que eu, depois, quando entro em estúdio, começo a explorar.
Como surgiu a ideia de trabalhar com estas mulheres?
O teatro tem uma presença física, a possibilidade de criar um lugar de encontro, que é o que me interessa mais, com pessoas que não têm voz e que, mais do que isso, são totalmente invisíveis e das quais sabemos pouco, até porque existe pouca coisa escrita. A minha ideia era trabalhar o pêndulo neste duplo sentido: por uma lado, a comunidade de imigração, e por outro, o lado de cuidadora, da pessoa que trabalha fora de casa, noutra casa que não é a sua, que deixa a família. E dar lugar e voz a estas mulheres que são cada vez mais fundamentais quando a nossa população está tão envelhecida. Esta imigração é mais do que necessária, apesar de nós a tratarmos tão mal.
Que diferenças encontramos em relação a outros trabalhos seus com comunidades?
No Pêndulo ensaiei algo que nunca tinha feito em outras experiências anteriores com grupos não profissionais, e que foi partir de um pressuposto ficcional: imaginar que elas trabalham todas no mesmo lugar [o Supermercado Europa], e daí extrapolar para vários universos, do sonho, doméstico, de experiências anteriores. Há um organismo de onde saem todas as outras narrativas. Não é só uma ficção, não é só um documentário e, ao mesmo tempo, há muito da linguagem do cinema, no sentido em que, por exemplo, existem muitos flashbacks. Quis ser provocador também na forma, e não só no tema.
O texto é assinado a quatro mãos, com a escritora Djaimilia Pereira de Almeida.
Tento sempre reunir o máximo de pessoas à volta de um projeto. A escrita da Djaimilia interessa-me particularmente, ela coloca nos seus livros várias questões sobre os paradoxos da imigração em Portugal, principalmente a africana, e os clichés ligados a essa imigração. No caso dela, fala sobre a experiência de já ter nascido em Lisboa, e dessa ideia de que estão a falar-te de uma coisa que não conheces porque és portuguesa. Muitos dos textos que estas mulheres dizem foram explorados com a Djaimilia, numa mistura biográfica e ficcional.
No espetáculo, há sempre alguém que pega no telemóvel…
No livro As Telefones, de que gosto muito, a Djaimilia diz que os telemóveis são a grande forma literária da diáspora da imigração. Estamos sempre todos ao telemóvel, mas no caso destas mulheres, ele tem um grande valor. A imigração de hoje tem contornos distintos daquela que ocorreu nos anos 1970 e 1980. Hoje, as pessoas imigram sozinhas, sem família, a maioria encontra-se isolada. O telemóvel torna-se um vinculo.

O movimento corporal tem também uma presença forte.
Sim, é verdade. O corpo conta sempre uma história mais profunda. Ao ver uma pessoa a andar na rua, acho que se percebem muitas coisas, sobre a sua história, o seu modo de vida, as suas horas de sono. Por isso, começo sempre por trabalhar o movimento. A maior parte destas senhoras trabalha em horários ditos normais mas depois têm muitas horas pela frente até chegarem a casa e vivem em quartos partilhados. Ou seja, há aqui uma ideia de que nunca há um espaço de silêncio.
Elas fizeram um intervalo nos seus trabalhos para poderem participar?
A maior parte pediu uma licença sem vencimento e foi-lhes dada. Todas trabalharam no espetáculo com contrato.
A expectativa delas deve ser grande.
Ainda é tudo novo. O que se cria, creio, é uma experiência única e há um aumento da autoestima no sentido em que a vida se transforma. Mais do que ser dada voz, é dado um palco, literalmente. Ao mesmo tempo, pensam ‘então, e quando isto acabar?’. Há uma ansiedade muito grande, muita emoção, neste sítio de partilha, de encontro com pessoas e realidades a que nunca acedemos. Nesse sentido, é um grande privilégio fazer o que faço. Poder, através do teatro, trabalhar com estas pessoas e falar sobre estes problemas, de uma forma que não é moldada por intermediários, é um privilégio enorme.
O seu futuro vai continuar a passar pelo teatro?
Não penso tanto se vou fazer teatro ou cinema, depende mais dos projetos que vão surgindo. O Pêndulo resultou de um convite da Artemrede, que já tinha sido feito várias vezes e decidi desta vez aceitar porque interessava-me trabalhar com estas mulheres. E também porque, de alguma forma, em Great Yarmouth havia esta ideia de ‘ah, foste tão longe para falar da emigração portuguesa, quando ao teu lado…’. Este é um problema global. Interessa-me essa ideia da transformação progressiva do mercado de trabalho e esta forma neoliberal e selvagem: há um Estado social em que para pertenceres, tens que te prestar a muitos sacrifícios, é muito cruel… Na verdade, não é bem uma proteção. Por outro lado, os projetos de cinema demoram mais tempo (três, quatro anos) a financiar. O teatro, apesar de tudo, tem esta coisa maravilhosa que é conseguir juntar estas pessoas todas durante três meses e fazer um objeto. O cinema é mais solitário, isolado. Há uma rodagem de dois ou três meses em que se gasta o dinheiro todo, mas no resto do tempo estás sozinho.
São Luiz Teatro Municipal > R. António Maria Cardoso, 38, Lisboa > T. 21 325 7651 > 16-18 jun, sex-sáb 20h, dom 17h30 > €12