Luís Osório fala quase a sussurrar, como se estivesse a contar um segredo à sala lotada da Casa da Música, no Porto. Por esta altura, já ultrapassou o nervosismo dos primeiros minutos do espetáculo Ficheiros Secretos, um dos pontos altos da digressão nacional, e tem o público completamente agarrado às suas palavras. A plateia riu-se com uma história da campanha presidencial de Ramalho Eanes, comoveu-se com o drama familiar do dirigente comunista Dias Lourenço, surpreendeu-se com os sonhos e travessuras da infância de Jorge Nuno Pinto da Costa – um dos convidados especiais, que teve direito a uma das maiores ovações da noite –, aplaudiu o herói nacional Carlos Lopes.
No final, uma longa fila aguardava Luís para os autógrafos, mas este não se limitava a rabiscar uma assinatura – distribuía abraços e alongava-se nas conversas e dedicatórias. “Saí de lá às duas e meia da manhã… foi muito bonito, mas senti-me completamente esvaziado”, confessava à VISÃO, no dia seguinte.
No arranque, enquanto o público se sentava, ouviam-se algumas músicas escolhidas por Luís Osório: Gemini, Chico Buarque, Leonard Cohen, Carlos Paião, Jacques Brel ou José Manuel Osório, o seu pai, que também teve uma carreira como fadista.
Quando entrou na sala, levava consigo uma mala vermelha, que nunca abriu, carregada de memórias de familiares, daqueles que o tratavam por Miguel – hoje, ninguém o faz. Durante o espetáculo, convocou os seus fantasmas (sobretudo o da mãe, que deixou de cantar no dia em que ele nasceu) e os das figuras públicas retratadas, e revelou relações familiares, lutas interiores ou episódios engraçados, muitas vezes remetidos para notas de rodapé.
Nestas pequenas histórias, encontra um fio condutor para algo maior: a definição do País que somos, nas suas grandezas e imperfeições. “Podemos saber os grandes factos históricos de trás para a frente, mas estes não têm a dimensão humana”, acredita.
Um “bom contador de histórias”
O alinhamento de Ficheiros Secretos varia de acordo com a cidade onde são feitas as apresentações, tornando-as únicas e irrepetíveis. No Porto, falou-se do poeta Eugénio de Andrade, do político Sá Carneiro, do arquiteto Siza Vieira, da pintora Armanda Passos, entre muitos outros, alguns deles presentes na plateia – além do dirigente do FC Porto, estavam, por exemplo, Pedro Abrunhosa (que subiu ao palco para tocar a música dedicada ao seu irmão, já falecido), Rita Bulhosa e Fernando Alvim. Luís Osório conduziu a narrativa habilmente, ao ritmo das emoções.
“Se, há um ano, me dissessem que ia fazer isto, não acreditava”, conta. A génese do espetáculo aconteceu precisamente no Porto, numa das Quintas de Leitura, famosas e criativas sessões de poesia, em que foi convidado a apresentar o seu livro (com chancela da Contraponto e atualmente na quarta edição).
A experiência foi tão positiva que Rui Couceiro, o seu editor, desafiou-o nessa noite a escrever uma versão para o palco de Ficheiros Secretos. Para a estreia, em setembro de 2022, escolheram um terreno seguro: a sala do Recreios da Amadora, a mesma onde Tiago Rodrigues se tinha estreado no teatro – em tempos, o amigo encenador classificou Luís como “o pior ator” que alguma vez viu e fez-lhe prometer que nunca subiria a um palco. “Se lá corresse mal”, diz Osório, “ninguém saberia e, ao mesmo tempo, parecia que a vida me estava a indicar o caminho, pelo simbolismo da sala.”
Voltou a ultrapassar as expectativas, a ponto de o Grupo BertrandCírculo apostar numa digressão nacional, em que se destacam as passagens pela Casa da Música e pelo Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, também com lotação esgotada (estão agendadas outras sessões na Mealhada, Reguengos de Monsaraz, Alcochete e Moita).
“O Luís reúne características que o distinguem da maioria dos autores de livros: tem um grande talento para o manuseio da palavra, não só na escrita mas também na expressão oral”, diz Rui Couceiro. “É um bom contador de histórias, em qualquer contexto, e em poucas pessoas eu confiaria tanto para fazer este tipo de espetáculo.”
A ideia era recuperar memórias de personagens marcantes da História e da sociedade portuguesa – as presentes no livro e também as de conhecidos ou anónimos relatadas no Postal do Dia, textos escritos diariamente por Luís Osório na sua página do Facebook (com mais de 114 mil seguidores) e lidos na TSF. “Quando deixou a Imprensa, encontrou nas redes sociais a possibilidade de continuar a ter um espaço de opinião, que, nos últimos anos, tem sido um dos mais lidos e influentes de Portugal”, assinala Rui Couceiro. “É um homem de afetos e de olhar positivo, embora escreva de forma acutilante e não tenha medo de colocar o dedo na ferida.”
Nos comentários dos seguidores, percebe-se como consegue ser uma figura agregadora, capaz de gerar consensos à volta dos temas que aborda. “Às vezes, no Postal do Dia, quase me autodisciplino para dizer mal de alguma coisa – quando o faço, é complicado, porque tem efeitos duros”, confessa Luís. Mas não se coíbe de responder às mensagens que lhe enviam e de alimentar uma ligação com os leitores. “A relação de proximidade que as pessoas estabelecem comigo é impressionante. É o que me protege da soberba.”
Ficheiros Secretos tem um formato difícil de qualificar. Há qualquer coisa de litúrgico na forma como o mestre de cerimónias homenageia os heróis da nossa praça. “Aqui, fui ao encontro do que sou na minha essência: irrequieto, arrisco sempre e, muitas vezes, divido águas.” Não foi o caso deste espetáculo. Se algo ficou provado foi a capacidade aglutinadora de Luís Osório.
Ficheiros Secretos > Cineteatro Messias, Mealhada > 15 abr, sáb, 21h30 > Auditório Municipal de Reguengos de Monsaraz > 22 abr, 21h30 > Fórum Cultural de Alcochete > 5 mai, 21h30 > Auditório Municipal da Moita > 12 mai, 21h30