Não há autor no século XX português que encaixe tão bem no cliché de “poeta” do imaginário popular, mesmo daqueles que nunca ou raramente leem poesia. Eugénio de Andrade escrevia sobre flores, o vento, água, pássaros, as árvores, a lua, a infância, o silêncio, os corpos na juventude… Tinha uma certa aura de eremita, de antissocial a olhar o horizonte, e facilmente uma brisa lhe despenteava os cabelos. Os seus dias e os seus poemas rimavam facilmente com a melancolia. A poesia impôs-se na sua vida, quase como se não tivesse tido escolha. “Desde cedo me encontrei desinteressado de coisas que interessavam à maioria. Na adolescência, tive duas fascinações: a santidade e a poesia. A santidade, adeus, aos catorze anos isso estava arrumado. Ficou a poesia”, disse, numa das raras entrevistas em que aceitava falar da sua vida (esta, a Antónia de Sousa, no Diário de Notícias, em 1983, coligida no volume Prosa, publicado no ano passado pela Assírio & Alvim). Mas mais do que orgulho e vontade de vingar como poeta, parecia haver algum desconforto, até vergonha, com esse destino. Era, aliás, por essa razão que José Fontinhas explicava a escolha do pseudónimo por que sempre ficaria conhecido: “Parece-me óbvio que havia então um propósito de ocultação. Sentia-me nu nos versos que escrevia, daí a necessidade de me esconder [no seu livro Rosto Precário, de 1979].”
A infância e a adolescência de Eugénio de Andrade foram fundamentais para iluminar toda a sua obra poética, até ao fim. Tornar-se-iam mesmo uma espécie de éden mítico e irrecuperável. José Fontinhas nasceu na Póvoa de Atalaia, concelho do Fundão, a 19 de janeiro de 1923, “filho de camponeses abastados pelo lado paterno e de gente que trabalhava a pedra pelo lado materno”. O pai, a quem, num texto, chamou “senhorito”, esteve sempre ausente da sua vida e obra, recusou-o; no outro extremo, a mãe, com quem cresceu, foi uma presença constante (“só ela era meu pai”, escreveria). Depois de uma breve passagem por Castelo Branco, aos 9 anos foi estudar para Lisboa, mas a Póvoa de Atalaia continuava a ser um lugar de maravilhamento nas férias: “Os primos, os cavalos em pelo, os banhos na ribeira, as fugas para a sombra escura dos amieiros, o sexo a berrar a sua exigência, o esplendor do verão, que nesse tempo durava, durava… Nos meus poemas, há imagens frementes da maravilha desses dias.”
“Vou às cegas para o poema”
Eugénio de Andrade ainda passou por Coimbra, onde conheceu Eduardo Lourenço e foi amigo de Miguel Torga (“Temos o mesmo comprimento de onda, e é uma maravilha de sintonização poética”, escreveria, no seu Diário, o autor de Bichos), antes de, em 1950, se fixar no Porto até ao fim dos seus dias. Durante 35 anos, exerceu a profissão de inspetor dos Serviços Médico-Sociais (“Sempre preferi um trabalho distante do que em mim era mais vulnerável: a poesia e a vivência dela”, disse).
Gostava de considerar As Mãos e os Frutos, de 1948, o seu primeiro livro de poesia, embora antes já tivesse publicado Adolescente (1942) e Pureza (1945) – desses dois livros decidiu resgatar apenas dez poemas para a posteridade. “Vou às cegas para o poema, como certos animais caminham por instinto para o local da morte. As palavras aí estão, amorfas, ainda. A mão, com infinita paciência, vai-as aproximando, criam-se tensões entre algumas, outras fundem-se para sempre, assim vai nascendo o poema. Um pequeno organismo começa a respirar, a exigir atenção”, disse sobre a arte que lhe valeu, em 2001, o Prémio Camões. Nem só de poesia se fez a sua carreira literária. Em 1993, publicou, por exemplo, À Sombra da Memória, onde evocava lugares e pessoas da sua vida.
Neste ano de centenário, as celebrações estão ligadas à geografia sentimental de Eugénio de Andrade. No Fundão, a autarquia promete um ano de programação cultural sobre o poeta, que inclui a construção de uma “sala de leitura”, projetada por Siza Vieira, na Póvoa de Atalaia, e o regresso do Festival Literário da Gardunha, em datas a anunciar, centrado na vida e obra do escritor.
No Porto, além da exposição na Cooperativa Árvore (ver caixa em baixo), também há comemorações especiais por estes dias, com destaque para a inauguração, nesta quinta-feira, 19, da exposição Eugénio de Andrade, A Arte dos Versos, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, partindo do espólio que foi entregue ao município do Porto, em 2020. Com entrada gratuita, aí será possível ver, até 29 de abril, “documentos inéditos, manuscritos, postais, cartazes e objetos que nos revelam estórias, viagens e encontros com os seus pares”. O ciclo Leitores de Eugénio, que convida artistas, políticos, jornalistas e investigadores a escolher e ler poemas, vai acontecer quinzenalmente, às quintas-feiras, e começa no dia 19, às 17h30, com Pedro Abrunhosa como intérprete; no dia 20, à mesma hora, há uma visita guiada à exposição com Arnaldo Saraiva, que presidiu à Fundação Eugénio de Andrade até à sua polémica extinção em 2011, seis anos após a morte do poeta.
Outro poeta que fez do Porto a sua cidade, e até partilhava com Eugénio de Andrade alguns interesses profundos (a serena busca dos filósofos orientais de um sentido para a vida, por exemplo), Manuel António Pina publicou, em 1992, no Jornal de Notícias, uma crónica (Antes da Crónica) que questionava a efemeridade das tricas políticas e faits-divers dos jornais. Recordava que, folheando um velho Diário de Notícias, só umas poucas linhas lhe diziam, de facto, alguma coisa tantos anos depois: aquelas que davam conta de que “um certo Sr. Mário de Sá-Carneiro tinha publicado um livro de versos”. E concluía: “Daqui a 50 ou 100 anos, o mais que algum rato de universidade conseguirá provavelmente dizer sobre Cavaco Silva, depois de ter vasculhado todos os arquivos, é que foi um primeiro-ministro do tempo de Eugénio de Andrade.” Os grandes poetas são para sempre.
Na “Árvore”, entre amigos
A Cooperativa Árvore, no Porto, inaugurou uma exposição coletiva de pintura e desenho, evocativa do centenário do nascimento de Eugénio de Andrade – que é, sobretudo, um testemunho de amizade
Vinha de longe a relação de Eugénio de Andrade com a Cooperativa Árvore, instituição cultural do Porto, que celebra 60 anos em 2023. Terá nascido quando o escritor e poeta morava na Rua Duque de Palmela, no Bonfim, próxima da Faculdade de Belas-Artes, onde gravitavam artistas como Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro e José Rodrigues, fundadores daquela cooperativa de atividades artísticas, nascida na ditadura. “Eram os jovens artistas promissores da altura, e o Eugénio funcionava como uma espécie de mentor cultural e artístico. Era o que o Zé [o escultor José Rodrigues, falecido em 2016] me contava”, lembra o pintor e atual presidente da Árvore, José Emídio, 66 anos, que não chegou a fazer parte desse núcleo. Daí que a instituição tenha “sentido o dever de evocar o centenário do poeta”, através da exposição Poesia 100 Eugénio, título homónimo da pintura do próprio Emídio – em que a poesia surge na figura de uma mulher –, que integra a mostra, inaugurada no sábado, 7, e que estará patente até 29 de janeiro. “O que aqui evocamos é a ligação que tivemos com o Eugénio e a do Eugénio com a Árvore”, sublinha o artista, lamentando, contudo, que a celebração do centenário do poeta não tenha “uma dimensão nacional”, à semelhança “do que aconteceu com Agustina Bessa-Luís”.
Embora Eugénio de Andrade não tivesse sido sócio da cooperativa Árvore, “há um registo dele que paira por aí”, aponta José Emídio, e que seria fruto das muitas tertúlias entre o escritor e artistas, aos sábados e domingos, no Café Cifrão, ao lado das Belas-Artes. “No Porto, viviam-se tempos sombrios. Havia sempre uma tentativa de criar espaços de liberdade, de questionar e fazer oposição ao regime.” Foi devido a esta íntima ligação que o velório do poeta, em junho de 2005, decorreu na Árvore. Dessa ocasião resultaram três obras inéditas, que fazem parte desta exposição e testemunham a história de amizade entre José Rodrigues e Eugénio de Andrade: diante do caixão, o escultor pegou em três folhas A4 e desenhou o amigo defunto, mas acabaria por as amarrotar e deitar fora. Os desenhos foram salvos pelo seu secretário pessoal e podem, agora, ser vistos pela primeira vez. “São um exemplo extraordinário da manifestação da emoção de um grande artista ao ver o amigo morto”, nota José Emídio.
A mostra inclui ainda fotografias da pintora e amiga pessoal Graça Martins (que, com Maria Bochicchio, organizou, em 2015, a exposição Retrato de uma Amizade, na Fábrica Social – Fundação Escultor José Rodrigues, no Porto), obras de Acácio Carvalho, Emerenciano, Evelina Oliveira, Mário Bismarck, Zulmiro de Carvalho e Paulo Neves, entre outros. Ao longo deste mês, a Árvore organiza também duas tertúlias sobre a obra do poeta: a 19 de janeiro (dia do centenário), com as participações de Arnaldo Saraiva, Emerenciano e da poetisa Inês Lourenço; e, no dia 28, com Ágata Rodrigues (filha de José Rodrigues), Graça Martins e Maria Bochicchio. Como escreveu Eugénio de Andrade: “Os amigos amei despido de ternura fatigada...”. Florbela Alves
Poesia 100 Eugénio > Cooperativa Árvore > R. Azevedo de Albuquerque, 1, Porto > T. 22 207 6010 > até 28 jan, seg 9h30-18h, ter-sex 9h30-18h30, sáb 14h-19h > grátis
Eugénio de Andrade, A Arte dos Versos > Biblioteca Municipal Almeida Garrett, Jardins do Palácio Cristal, R. D. Manuel II, Porto > T. 22 608 1000 > 19 jan-29 abr, seg-sáb 10h-18h > grátis