“Sou um quase não louco”, a frase é de John Cassavetes e serviu de título a um documentário sobre o próprio da autoria de Michael Ventura. Uma frase que bem o define.
Cassavetes é uma das figuras mais influentes do cinema independente americano. É difícil imaginar o cinema de Jim Jarmusch ou de Noah Baumbach sem essa raiz. Contudo, ele nunca foi um vanguardista louco, capaz de puxar os limites do cinema a formas não narrativas, como fez Andy Warhol ou Jonas Mekas. A sua revolução fez-se dentro de balizas definidas. E a maior loucura foi insistir determinadamente em fazer o seu cinema contra tudo e contra todos. Quando os produtores lhe cortaram os meios, ele arriscou criar o seu próprio modelo de produção. Arriscou loucamente.
Em termos artísticos, o desafio era outro. Cassavetes quis fazer um cinema do quotidiano, procurou diálogos naturalistas, deixando margem aos atores (profissionais ou não) para recriarem o argumento, enquanto ele próprio fazia da câmara quase uma personagem – em alguns filmes de Cassavetes é como se a câmara fôssemos nós, ou alguém que, por acaso, estava por ali a passar.
Nascido em Nova Iorque em 1929, de ascendência grega, fez o curso de ator na American Academy of Dramatic Arts. E foi enquanto ator que iniciou a sua carreira, sobretudo na televisão. De um trabalho de curso nasceu a ideia de Sombras, o seu primeiro filme, obra-prima do cinema independente americano. Para o financiar, Cassavetes recolheu donativos de ouvintes de um programa de rádio onde explicou o projeto e também de alguns amigos, incluindo os realizadores William Wyler, Joshua Logan e Robert Rossen. O diretor de fotografia alemão Erich Kollmar era o único elemento da equipa com experiência cinematográfica.
O que emana de Sombras é um gesto de liberdade. O jazz que aparece em fundo assume o espírito do filme e define a falta de balizas. A câmara divaga livremente pelas ruas e pelos espaços. As sombras, que lhe dão título, remetem também para um estilo estético, com magníficos jogos de contraste, a preto-e-branco, num ambiente próximo da beat generation, ao mesmo tempo que conta uma história de temática racial. O filme foi premiado em Veneza.
Quando John Cassavetes lançou Sombras (em 1959) já era uma cara conhecida da televisão, tendo participado em mais de uma dezena de séries como ator. Depois, aventurou-se na realização de uma minissérie, Johnny Stacato, com algum sucesso, e realizou dois filmes que se revelaram fracassos de bilheteira.
Até que, em 1968, teve um novo golpe de génio. Tal como acontecia em Sombras, Rostos descreve o seu conceito estético no filme. Com a câmara sempre muito livre, há uma obsessão pelos rostos e pelos close-ups.
Se em Rostos apresentava Gena Rowlands, a sua mulher, em Uma Mulher Sob Influência, o filme seguinte, a atriz revela-se brilhante e a cara que mais associamos ao cinema de Cassavetes. O filme, que conta a história de uma mulher com uma crise psiquiátrica, teve duas nomeações para os Oscars (para as categorias de melhor atriz e de melhor realizador), extraordinário feito, na altura, para um filme independente.
Seguiu-se A Morte de um Apostador Chinês, também produzido e distribuído pela Faces (empresa do próprio Cassavetes). Tendo Ben Gazzara como ator principal, Cassavetes arriscou um film noir, mas, como não poderia deixar de ser, fê-lo à sua maneira, com preceitos estéticos personalizados, e desmontando algumas convenções do género.
A retrospetiva, com a marca da Leopardo filmes, termina com Noite de Estreia, de 1977, em que Gena Rowlands volta a brilhar, desta vez no papel de uma atriz que tem um esgotamento nervoso depois de assistir à morte acidental de uma fã sua. Mais uma vez, Cassavetes travou uma luta intensa para que o sistema aceitasse distribuir a obra. Na verdade, as grandes distribuidoras americanas só pegaram no filme em 1991, dois anos depois da sua morte.
A obra de Cassavetes é essencial para entendermos a natureza do cinema americano independente. O ciclo apresenta cinco títulos maiores, em cópias digitais restauradas, em várias salas do País (destaque para o Nimas, em Lisboa e Campo Alegre e Trindade, no Porto), deste cinema eternamente moderno. Entre 28 de julho e 9 de agosto, há, ainda, sessões especiais no Nimas com outros quatro filmes de Cassavetes.
Ciclo John Cassavetes – O Verdadeiro Rebelde > Cinema Nimas (Lisboa), Teatro do Campo Alegre e Cinema Trindade (Porto) > até 31 ago > programação aqui