Europa Oxalá reúne criações de 21 artistas, quase todos filhos ou netos de pessoas nascidas em antigas colónias europeias em África, como Argélia, Congo, Angola, Madagáscar e Benim. Do seu passado e da sua herança têm memórias difusas, que lhes chegam por via familiar e são ponto de partida para um trabalho artístico que questiona (e, por vezes, desconstrói) a memória colonial.
“O que fizemos com a nossa memória colonial? Como dizer, hoje, que fazemos todos parte da Europa?”, interrogava-se Aimé Mpane na apresentação da exposição aos jornalistas. Mpane e Katia Kameli são os dois artistas que António Pinto Ribeiro, programador cultural e investigador do projeto Memoirs – Filhos do Império e Pós-Memórias Europeias, do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra), convidou para comissariarem com ele esta exposição.
Aqui, cria-se um diálogo entre as peças de artistas afrodescendentes de segunda e terceira geração. Enquanto os primeiros se definem por terem desenvolvido trabalho de investigação nos arquivos históricos, familiares ou institucionais, os últimos caracterizam-se por terem os olhos postos no futuro. É o caso de Sara Sadik, 28 anos, que utiliza uma estética e uma linguagem próximas dos videojogos em Khtobtogone, vídeo sobre a comunidade magrebina de Marselha. Ou de Sandra Mujica, norueguesa com ligações à Nigéria, em cujo trabalho Pinto Ribeiro sublinha “a dimensão de apropriação tecnológica surpreendente” que “destrói por completo o cliché de que os artistas africanos trabalham com artesanato”.
Até 22 de agosto, Europa Oxalá inclui um programa de visitas guiadas e conferências (em que se falará de temas como arte saqueada), cinema ao ar livre, teatro e concertos.
Seis obras a não perder na exposição
1. DADA, de Sabrina Belouaar
Dada, o nome da peça que abre a exposição, a única que ocupa o painel que dá acesso à grande sala principal da Gulbenkian, é como se diz “papá” na Argélia. São duas mãos em tensão, amarradas por cintos. “Foi consensual entre os três comissários que esta deveria ser a primeira peça”, explica Katia Kameli, artista e comissária de Europa Oxalá. “É uma obra simples, mas extremamente forte. Para mim, tem muitos níveis de leitura. Vemos os países colonizados que foram amarrados e violentados, e sentimos essa violência, mas também podemos ver a enorme força destas mãos.” A autora de Dada – Sabrina Belouaar, que tem mais três peças na exposição – é uma das mais jovens artistas desta mostra. Nasceu em França em 1986 e “o seu trabalho artístico parte de uma história familiar marcada por injustiças e desigualdades e conta de um modo universal a sua dificuldade em encontrar o seu lugar, sobretudo como mulher, numa sociedade ocidental profundamente estigmatizante relativamente a todos aqueles que mantém afastados”, lê-se no catálogo.
2. SOUVENIR E ÉPURATION ÉLECTIVE, Fayçal Baghriche
Qual é a primeira coisa que uma criança faz quando lhe passam um globo para as mãos? Pô-lo a rodar. Fayçal Baghriche gosta de peças “fáceis, que se percebem de imediato”, que, nas suas palavras, “falam logo com qualquer pessoa”; e é ele que se refere a uma criança para explicar Souvenir, um globo iluminado a rodar tão depressa que não conseguimos ver nada, nem países nem continentes – tudo desaparece. O desaparecimento é mesmo o tema central do trabalho deste artista nascido em 1972, na Argélia. A grande parede azul, perto do globo, tem por base a ampliação de uma página de um livro com bandeiras de países nas quais o artista fez desaparecer tudo exceto as estrelas.
3. RHYTHM AND POETRY, de Francisco Vidal
Cores luminosas e fulgurantes, uma torrente de figuras e objetos sobrepostos em camadas cheias de movimento e energia, eis a pintura de Francisco Vidal escolhida para esta exposição. Representante de Angola na Bienal de Veneza de 2015, o artista nasceu em Lisboa em 1978, filho de mãe cabo-verdiana e de pai angolano. Estudou na ESAD das Caldas da Rainha e fez o mestrado em Belas Artes na Universidade de Columbia, Nova Iorque. Cubismo, pop art e street art são referências de um trabalho que “desenvolve uma reflexão contínua sobre as possibilidades discursivas da expressão artística, baseada na sua própria experiência de vida e na observação minuciosa das sociedades portuguesa e angolana”, lê-se no catálogo da exposição. Francisco Vidal considera-se português, cabo-verdiano e angolano.
4. SANS TITRE, de Sammy Baloji
Obuses disparados na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais, alguns artisticamente esculpidos, são hoje usados como jarras de flores e colocados nas salas de muitas casas na Bélgica. O fabrico destas peças de artilharia contribuiu para a exploração, pelos europeus, dos recursos naturais do Congo, nomeadamente da região de Katanga, zona de que é originário Sammy Baloji, nascido em 1978. O seu trabalho centra-se na amnésia em relação à escravatura e ao colonialismo. Ao colocar dentro dos obuses-jarras plantas tropicais originárias de Katanga, o artista criou um confronto entre a banalização do esquecimento e a capacidade de adaptação destas plantas às casas das famílias burguesas europeias.
5. FALLING THRONES, de Márcio Carvalho
“Encaro o espaço público, sobretudo o de Lisboa, como um arquivo que precisa de uma nova gramática arquivística”, diz Márcio Carvalho, nascido em Lagos, em 1981, no seio de uma família que deixou Angola na altura da Guerra da Independência. “Trabalho o espaço público no sentido de o tornar um espaço inclusivo, com novas histórias.” É exatamente essa a sua proposta na série Falling Thrones: recorre aos Jogos Olímpicos e suas estruturas de poder para juntar às estátuas que glorificam o passado colonial homens e mulheres que lutaram contra o colonialismo. Aqui ao lado, vemos o cavalo de uma estátua de Leopoldo II da Bélgica, que administrou o Congo como um território privado, e Patrice Lumumba, figura central do movimento de libertação.
6. NGUNGA, de Aimé Mpane
Nascido em 1968 na República Democrática do Congo, e dividindo hoje o seu tempo entre Bruxelas e Kinshasa, Aimé Mpane é um dos dois artistas que, além de estarem representados na mostra, são também comissários. Nesta peça, realizada entre 2018 e 2020, parte de uma interrogação sobre o simbolismo da bandeira europeia, questionando, assim, a unidade da UE e como ela pode ser vista por quem está de fora. Não encontrando explicação para as estrelas serem 12, Mpane substituiu-as por flores. A bandeira é cortada por um rasgão no azul – cor usada em muitas medalhas religiosas – com a forma da silhueta da Virgem representada na Nossa Senhora das Graças, quebrando a “união sagrada”. Os pneus quadrados, com as inscrições “pacificação”, “democracia”, “tratados” e “justiça”, remetem-nos para a ideia de que nem tudo corre sobre rodas nos assuntos europeus…
Europa Oxalá > Fundação Calouste Gulbenkian > Av. de Berna, 45A, Lisboa > T. 21 782 3000 > até 22 ago, qua-seg 10h-18h > €5