Por vezes, este filme parece oscilar na linha ténue que separa o retrato da caricatura, mas nunca resvala. Surdina é, na sua essência, um retrato social ou comunitário, localizado entre duas freguesias: São Cristóvão de Selho e o centro histórico de Guimarães. Muitas das personagens são caricatas, os diálogos são bem construídos, mas sem se desviarem de um certo realismo, que lhes dá graça e faz com que o filme funcione, acima de tudo, como uma comédia de costumes, apesar de conter inevitavelmente elementos dramáticos. E consegue, de forma natural, partir do local para o universal.
Neste caso, não há dúvida de que os bons resultados espontaneamente conseguidos se devem à relação íntima com o meio. Esta alternância entre São Cristóvão (uma das freguesias de Guimarães) e o centro histórico corresponde precisamente aos mundos dos dois autores do filme: a família de Valter é de São Cristóvão e Rodrigo é uma figura central da movida de Guimarães (que se tornou um polo cultural importantíssimo). Assim, percebemos que, ao contar a história de um homem traído, que encontra uma forma peculiar de lidar com as más-línguas do povo, Rodrigo está essencialmente a filmar os seus vizinhos, a replicar personagens de carne e osso da cidade, tão castiças como autênticas.
Outro ponto interessante é que, não obstante a sua imensa frescura, Surdina é um filme de velhos. É feito em volta de personagens em idade avançada, como quem quer registar um mundo que subsiste, com características fortes e expressivas, que vale a pena documentar.
Cruzando atores profissionais, com os chamados “não atores”, este é, sem dúvida, o filme em que Rodrigo Areias mais se aproxima da sua realidade quotidiana. Aliás, a sua obra de ficção tem-se pautado por uma oscilação entre géneros, reveladora de uma insaciável vontade de experimentar.
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Surdina > De Rodrigo Areias, com António Durães, Emília Silvestre, Adelaide Teixeira, 75 min.