Perguntam-me muitas vezes porque é que, a ter de escolher um único realizador, o de eleição, escolho Ingmar Bergman. A minha resposta é sempre a mesma: não sei explicar, mexe-me demasiado com as entranhas. E não há outra expressão para descrevê-lo, é algo de seminal. O cinema Nimas, em Lisboa, está a organizar mais uma vez um ciclo dedicado ao cineasta sueco, com a apresentação de 23 filmes em sala, de uma filmografia que, entre longas, curtas, documentários e filmes para televisão, ascende aos 70 títulos.
Na autobiografia Lanterna Mágica (Caravela, 1988; Relógio d’Água, 2002), está lá tudo. “Meu irmão tentara pôr termo à vida, minha irmã, em consideração pela família, foi obrigada a fazer um aborto, eu fugi de casa. Os meus pais passavam a vida numa crise constante, sem começo nem fim. Cumpriam o seu dever, esforçavam-se, imploravam misericórdia a Deus, mas as normas por que se regiam, os conceitos que tinham, as tradições que seguiam não lhes serviam de nada”, escreveu. Os traumas de infância e o drama das relações familiares – e conjugais – foram sempre uma capa demoníaca a pairar sobre as costas de Bergman, que arranjava forma de a aliviar transpondo-a para a carga emocional que exigia aos seus atores em contracena. Nos seus filmes, a culpa é não só um ponto de partida mas também um lugar de chegada. A ideia de Deus, traduziu-a na figura da morte, do castigo último, elevada ao estatuto de ícone pop em O Sétimo Selo. Além deste e de outros títulos mais conhecidos do cineasta, como A Máscara, Morangos Silvestres, Fanny & Alexandre, Mónica e o Desejo, Sorrisos de uma Noite de Verão, A Força do Sexo Fraco ou Cenas da Vida Conjugal, há por exemplo O Silêncio, sobre a tensão entre duas irmãs que roça o sexual; Sonata de Outono retrata a relação de agressão entre uma mãe pianista de sucesso e uma filha casada com um clérigo; no filme Em Busca da Verdade, Harriet Andersson faz um papel extraordinário de louca a quem a família quer internar; Lágrimas e Suspiros retrata três irmãs a viver na cama do quarto de uma mansão, uma delas à espera de morrer.
O ciclo começa com Da Vida das Marionetas, o filme que fez em alemão, maravilhosamente sinistro. É a história de um homem que mata uma prostituta e remonta ao período em que o realizador se exilou em Munique devido a acusações de fuga aos impostos. Falta neste ciclo um dos grandes filmes do Bergman, que tem a representação mais assombrosa que alguma vez vi do Diabo: A Hora do Lobo. Na floresta, à noite, há um grande plano da cara de Gunnar Björnstrand com os seus olhos a vitrificarem- -se e a fixarem os meus. É o único filme do meu realizador de eleição que até hoje não voltei a ver. E não será desta.
Ciclo Ingmar Bergman > Cinema Nimas > Av. 5 de Outubro, 42, Lisboa > 17 ago-13 set > €5