Há duas raparigas em cena iguaizinhas às meninas de Velázquez: vestidos beges com flores, de ancas largas, e botõezinhos à frente, cabelos penteados tal e qual. Chegará também um médico, portador de precioso veneno, com o cabelo cheio de cobras, tal como Medusa, de Caravaggio. Foi às pinturas de que gosta que o encenador António Pires foi buscar inspiração para dar consistência a Cimbelino, de William Shakespeare, uma obra de cenas curtas e rápidas que durante anos ninguém sabia se devia ser classificada como tragédia ou comédia. “O que me faz gostar desta peça é ela ser tão esquisita e diferente do resto das peças de Shakespeare”, diz António Pires. “Em Cimbelino, as cenas são curtas, nada reflexivas como as outras, mas antes ligadas à ação e à narrativa. Passam-se em vários sítios diferentes e tão depressa estamos em Roma, como na Britânia, como no País de Gales. Começam quase todas no pico do conflito, nem têm tempo para se ir instalando”, descreve.
Uma “montra das peças de Shakespeare”, em que se reconhece Romeu e Julieta, Otelo e outras das suas obras, em que, exatamente por isso, o encenador quis jogar com as memórias dos espectadores, indo buscar referências à pintura sobretudo, mas também às músicas que fazem o nosso imaginário, aos contos de fadas, à tradição popular. António Pires descreve-a como “uma peça quase cinematográfica”, levando essa ideia para o palco a céu aberto das Ruínas do Carmo e jogando com a luz orgânica das pedras e com objetos de grandes dimensões que vão compondo o cenário.
Em cena, juntam-se cinco atores do Teatro do Bairro (Adriano Luz, Rita Loureiro, Ricardo Aibéo, João Araújo, João Barbosa) e 20 alunos da ACT School para nos contar esta história do Rei Cunobelino, na antiga Britânia. Amores contrariados, supostas infidelidades, ciúmes, equívocos, mentiras, lutas pela independência (“o Brexit” como lhe chamam aqui), de tudo isto se faz Cimbelino, numa trama que se vai adensando de cena para cena – para no fim terminar desembrulhada. Afinal, pode ser rápido o caminho da tragédia à comédia.
Cimbelino > Museu Arqueológico do Carmo > Lg. do Carmo, Lisboa > T. 21 347 3358, 91 321 1263 > 3-13 ago, seg-dom 21h > €10, €15