Estão os dois sentados em bancos, lado a lado, ele muito grande, com o braço atrás dela. Ela, ainda mais pequenina ao lado dele, caída para a frente, inanimada. Nesta adaptação de Pinocchio, do italiano Carlo Collodi, António Mortágua é um imponente Geppetto, e Carolina Salles um Pinóquio sem género, boneco de pau de voz fina a descobrir o mundo – “um simples bocado de madeira, um bocado de lenha” que se transformará num “boneco maravilhoso que saiba dar saltos” e que depois sonha com o dia em que se transformará num rapaz de cabelo castanho e olhos azuis como todos os outros. Com a sua companhia Primeiros Sintomas, o encenador Bruno Bravo põe em palco os tormentos deste boneco que não quer ir à escola, para poder comer, beber, dormir e divertir-se, que troca a cartilha por um bilhete para o teatro de fantoches, que enterra moedas de ouro com a crença que se multiplicarão, que vai atrás de uma semana com seis sábados e um domingo – e que enfrenta sempre “castigos merecidos” por ser “teimoso e casmurro” e querer fazer tudo à sua maneira. Uma história com que se cruzou na infância, tal como muitos de nós, e que mais tarde redescobriu, conta. “O livro acompanhou o meu crescimento e, anos depois, percebi que tinha potencialidades literárias muito interessantes, palavras muito belas, provocadoras de uma grande imaginação. É um texto riquíssimo e, ao mesmo tempo, terrível, negro e trágico.”
Tal como fez em O Retrato de Dorian Gray, Bruno Bravo pega num texto não teatral e dá-lhe em cena uma teatralidade imensa, baseada num trabalho de atores muito forte. “É um livro direcionado para crianças mas que transporta as questões morais e as regras que a sociedade impõe. Ali estão os princípios dessa condição humana: o que somos, o que queremos ser, o que podemos ser.” Em palco, com apenas três personagens e um coro de vozes off, vive-se um sonho/pesadelo surrealista, entre grandes figuras de animais ilustrados. Um “espetáculo dentro do espetáculo, o teatro a falar de teatro”, como nota o encenador, onde não sabemos quando começa a realidade ou a imaginação e onde, num “falso monólogo”, Pinóquio (nos?) fala – a marioneta a quem o pai diz “levanta-te”, uma e outra vez. “Faz lembrar um terror noturno, uma violência do crescimento. Afinal, a infância é aquele lugar onde sabemos que estivemos mas do qual já não nos lembramos de muitas coisas. E também o período que mais nos liga ao teatro”, descreve Bruno Bravo.
Pinocchio > Teatro Municipal Maria Matos > R. Frei Miguel Contreiras, 52, Lisboa > T. 21 843 8801 > 27 fev-5 mar, ter-sáb 21h30, dom 18h30 > €6 a €12